Em 2013, Paulo Nogueira escreveu este texto sobre Ayrton Senna. Nesta quarta-feira (1°), o mundo do automobilismo relembra os 30 anos de sua trágica morte.
Em 1º de maio de 1994, o tricampeão mundial de F1, à época pela Williams-Renault, morreu em um acidente durante o Grande Prêmio de San Marino, em Ímola, na Itália.
O artigo de Paulo está mais atual que nunca:
“Tenho uma confissão a fazer”, disse, emocionado, o jornalista inglês Jeremy Clarkson no final de um tributo a Ayrton Senna no programa automobilístico que ele comanda, o Top Gear. Clarkson é, provavelmente, o jornalista mais respeitado quando o assunto é carros não só na Inglaterra – mas em todo o mundo. “Nunca fui fã do Senna. Meu piloto predileto sempre foi o Gilles Villeneuve. Mas depois de ver horas e horas de vídeo para fazer este programa vi que o Villeneuve foi espetacular em algumas corridas ao passo que o Senna foi espetacular cada vez que se sentou num carro de Fórmula 1.” (…)
O site da BBC publicou a lista dos vinte maiores pilotos da história. O número 1 era ele, Ayrton Senna da Silva — isso na terra que inventou as corridas de automóveis e a Fórmula 1, e que foi berço de lendas das pistas como Jim Clark e Nigel Mansell.
Senna continua a fascinar, como se ainda pilotasse. Ou como se ainda vivesse.
Na homenagem a Senna, o Top Gear caprichou. Presenteou o campeão mundial Lewis Hamilton – e por extensão os telespectadores – com uma volta na lendária McLaren em que Senna conquistou a imortalidade na Fórmula 1 com suas vitórias e títulos fundados nua mistura única de audácia extrema, dedicação completa e pilotagem cerebral. Hamilton disse que era um dos momentos mais felizes de sua vida. E contou que se lembrava perfeitamente do dia em que Ayrton Senna morreu – em maio de 1994, aos 34 anos, quando um problema em sua carro o impediu de fazer a Curva Tamburello, no momento em que ele liderava o GP de Ímola, na Itália. “Minha mãe me contou. Eu tinha 9 anos. Posso recriar a cena inteira ainda hoje. Chorei profundamente.”
De tempos em tempos, uma morte tem o poder de comover e marcar milhões de pessoas, irmanadas num luto que cruza fronteiras e atravessa os anos. Foi o que aconteceu em dezembro de 1980, quando um fã descarregou sua arma em John Lennon em frente do edifício em que este morava em Nova York, o Dakota. E foi também o que aconteceu no domingo trágico de 1994 em Ímola. Pessoas numa quantidade formidável – não só no Brasil, mas mundo afora – são capazes de, como o piloto Lewis Hamilton, lembrar, quase vinte anos depois, o que estavam fazendo no preciso momento em que souberam da morte de Senna.
As estatísticas explicam parte do fascínio duradouro exercido por Senna. Nos anos em que correu na Fórmula 1, ele conquistou três títulos, ganhou 41 vezes e fez 65 pole positions. É muita coisa, mas outros pilotos têm números superiores aos dele. O alemão Michael Schumacher, por exemplo, tem sete títulos e 91 vitórias. Recentemente, vários pilotos foram ouvidos sobre quem foi o maior da história. O espanhol Fernando Alonson disse na hora: “Senna”. Hamilton também. Felipe Massa e Rubens Barrichello igualmente citaram Senna imediatamente diante da pergunta. O finlandês Mika Hakkinen, duas vezes campeão na década de 1990, ficou também com Senna. Ao saber da escolha de seus colegas, o próprio Schumacher disse: “Se me perguntarem quem foi o maior piloto de todos, eu também fico com o Senna”.
Como explicar o triunfo de Senna sobre os números que lhe são desfavoráveis? Primeiro, e acima de tudo, é preciso considerar que na Fórmula 1 o carro faz muita diferença – e Schumacher foi beneficiado por isso em diversas temporadas. Na Ferrari, particularmente, Schumacher não apenas teve um automóvel muito acima dos demais como ganhou da equipe companheiros que estavam na pista basicamente para ajudá-lo. Numa de suas vitórias, Schumacher ultrapassou seu colega de Ferrari Barrichello no momento em que este, por ordem da escuderia, virtualmente parou para que ele pudesse vencer. Foi um triunfo ultrajante. Mesmo assim, está computado nos números de Schumacher. Se não bastassem as supermáquinas e a posição ultraprivilegiada na Ferrari, Schumacher teve a sorte de correr numa era de pilotos medíocres.
Senna, ao contrário, competiu com gigantes como Alain Prost, com quem protagonizou uma das mais eletrizantes rivalidades da Fórmula 1. Nos dois anos em que eles foram companheiros na McLaren, em 1988 e 1999, Senna e Prost com seus carros vermelhos e brancos idênticos elevaram a Formula 1 a um patamar de competição e espetáculo que nunca mais voltaria a ser alcançado posteriormente. Disputaram o título nos dois anos volta a volta, prova a prova. Senna derrotou Prost em 1988 e só não repetiu isso em 1989 porque foi fechado pelo rival na prova decisiva quando estava prestes a passá-lo. (Em 1990, Senna daria o troco a Prost, batendo propositadamente na Ferrari deste logo na primeira curva da corrida que definiria o título, no Japão. Senna seria campeão se Prost não terminasse a prova, e Senna logo providenciou isso ao manter o carro descaradamente numa linha reta quando Prost ia tomando a ponta na curva.)
Senna, fora Prost, enfrentou nas listas outros pilotos formidáveis, como o brasileiro Nelson Piquet e o inglês Nigel Mansell. Por tudo isso, Senna prevalece nas comparações com Schumacher. É como se em Schumacher o mundo da Fórmula 1 visse a ação do carro superior aos outros e dos cartolas, para não falar dos adversários limitados, e, em Senna, puramente o fator humano. O mito é também alimentado pela morte prematura e sensacional. Mas a imagem de Senna como um piloto extraordinário nasceu bem antes que ele vencesse sua primeira prova na Fórmula 1. Mais precisamente: antes que ele disputasse sua primeira corrida na principal categoria do automobilismo mundial.
Senna deixou o Brasil para viver na Inglaterra, a pátria das corridas de automóvel, em 1981, aos 21 anos. No Brasil, ele já era conhecido como um piloto incomum graças a uma coleção de vitórias obtidas no kart desde que era criança. (No resto da vida, Senna falaria com nostalgia dos tempos de kart, em que o que havia era “pura corrida, sem dinheiro, sem politicagem”.) Na Inglaterra, Senna logo chamaria a atenção dos dirigentes das principais escuderias de Fórmula 1 ao ser campeão em divisões inferiores em 1982 e 1983 bem a seu estilo – ultrapassagens sensacionais e inconformismo com outra posição que não fosse a primeira. Sua vontade de vencer – colossal, para muitos doentia, mas sem dúvida essencial para que ele fosse o que foi – tem um bom paralelo, nos dias de hoje, com a gana do tenista espanhol Rafael Nadal.
Logo em sua primeira temporada na Fórmula 1, na pequena Toleman, Senna confirmou as expectativas elevadas em torno de seu futuro. Numa prova em que uma chuva forte praticamente igualou os carros, Senna, para admiração e surpresa de todos, parecia dirigir como se a pista só para ele estivesse seca. Largou de trás, foi passando um a um, com seu carro modesto, os adversários e quando tirava quatro segundos por volta do líder Alain Prost a corrida foi interrompida. Foi o primeiro de uma série memorável de desempenhos na chuva. A familiaridade de Senna com as pistas encharcadas veio dos dias de menino. Ele gostava de ir ao kartódromo, em São Paulo, quando chovia. Senna logo iria para equipes melhores – primeiro a Lotus, intermediária, e depois para a McLaren, onde ele viveria seus dias de ouro.
Em Senna se reuniam vários contrastes. O piloto exuberante se transformava, fora do carro, num homem discreto. Reservadamente, sem espalhafato, ele assim que pôde começou a ajudar crianças pobres em seus estudos – a maneira mais eficiente de permitir que ascendam. No documentário “Senna”, uma de suas falas apontava para algo que é hoje intensamente debatido no mundo: a disparidade social. No Brasil, notava ele, a beleza natural tem como contrapartida a violência, “provocada pela desigualdade”. Na pista, Senna ajudou brasileiros de todas as classes — alegrando-os com suas vitórias nos domingos pela manhã e mostrando, ao carregar a bandeira do país nas voltas de comemoração, que o Brasil tinha, sim, jeito.
Era religioso. Disse – com a proeza suprema de não cair no ridículo – que falou com Deus ao ganhar seu primeiro título. A fé vinha da mãe, Neide. Numa entrevista no começo da carreira de Senna, ela disse que pedia a Deus todos os dias que nada acontecesse com o garoto. Dez anos depois, o carro pilotado por seu filho não faria a curva Tamburello. Não existe registro, na história recente do país, de uma comoção comparável à que se viu no enterro de Senna.
Em seu túmulo, no Cemitério do Morumbi, está gravada uma inscrição: “Nada pode me separar do amor de Deus”. Pessoas mais céticas podem não acreditar em tais palavras, extraídas da bíblia. Mas ninguém ousaria discutir que nada pode separar Ayrton Senna do coração de milhões e milhões de pessoas de todas as partes que tiveram o privilégio de um dia vê-lo nas pistas – indomável, insaciável e, para muitos, absolutamente incomparável.