Ao ser questionado sobre os objetivos de sua visita, o pragmatismo habitual do chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, foi deixado de lado e ele foi quase efusivo. “A América Latina possui um potencial inacreditável”, afirmou, acrescentando que temas como expansão de energias renováveis, ecologia e sustentabilidade estão em pauta na região, assim como na Europa.
Hinos de louvor de janeiro de 2023 pouco antes de sua viagem à Argentina, Chile e Brasil, que começa neste sábado (28/06)? Poderia até ser, mas, na verdade, Scholz disse isso há exatamente dez anos, em abril de 2013 – não como chefe de governo, mas como prefeito de Hamburgo antes de embarcar para uma viagem de uma semana à América do Sul.
Assim, quase parece que o tempo parou na relação entre a Alemanha e a região. Há décadas, a América Latina tem sido exaltada como um parceiro em mesmo nível, com quem se divide a mesma cultura, os mesmos valores e os mesmos interesses. Uma ofensiva amplamente alardeada da Alemanha ou da União Europeia (UE) é encadeada na outra. Günter Maihold quase não aguenta mais ouvi-las.
O vice-diretor do Instituto Alemão para Política Internacional e Segurança (SWP) já teme a eterna manchete da imprensa alemã que poderia acompanhar a viagem de Scholz: “A Alemanha redescobre a América Latina”. Ou ainda pior: “[O naturalista alemão Alexander von]Humboldt seria ativado novamente como uma referência histórica, embora ele nunca tenha podido viajar ao Brasil“, afirma Maihold.
“A base comum desmoronou”, conclui Maihold numa análise que escreveu para a think-tank de Berlim sobre a relação entre a UE e a América Latina. A política de Berlim, assim como de Bruxelas, causou sérias rupturas nos últimos anos em toda a América Latina.
O especialista pontua que a recusa da União Europeia de enviar vacinas contra a covid-19 e, ao mesmo tempo, sua atitude contra o imunizante chinês não a tornaram exatamente popular. A política de sanções contra a Rússia também enfrentou rejeição na região.
“O Brasil depende muito da importação de fertilizantes da Rússia. O presidente argentino esteve em Moscou pouco antes do início da guerra e promoveu seu país com a porta de entrada para a Rússia na América Latina”, acrescenta Maihold. Para o especialista, não se deve ter “ilusões demais” em relação a um grande apoio para a posição alemã sobre a Ucrânia.
China veio para ficar
O mais recente levantamento do renomado instituto de pesquisa de opinião Latinobarómetro mostra como as relações de poder mudaram na região nos últimos anos. Em relação a temas como direitos humanos, proteção ambiental ou promoção da democracia, a Alemanha e a União Europeia continuam sendo vistas como parceiros, mas quando se trata de tecnologia e ciência, a China é citada quase sem exceção.
Produtos da Alemanha são responsáveis por 5,1% das importações do Brasil. Nos últimos 20 anos, caíram quase pela metade. Ao mesmo tempo, a China passou a ser o principal fornecedor do Brasil, com 22,8%, além de ser o maior comprador de bens brasileiros.
“A China é interessante para a América Latina porque não impõe grandes condições. Não faz questão de democracia, Estado de direito, proteção ambiental e os estudos correspondentes em cada projeto. E, na dúvida, a China vem com seus próximos trabalhadores e implementa os projetos de infraestrutura estratégicos”, avalia Maihold. “Embora, é claro, haja uma certa ressalva a respeito do tipo de influência que será exercida”.
Hidrogênio verde da China, lítio da Argentina
Para o Brasil, Argentina ou Chile, a Alemanha é como um antigo amigo da escola, que faz visitas esporádicas, nas quais a amizade e os velhos tempos são brindados, e depois desaparece rapidamente de novo.
Uma estratégia que claramente chegou ao seu limite diante da difícil situação geopolítica global. Segundo o especialista em América Latina, uma das tarefas de Scholz nesta viagem é deixar claro a diferença da China, que só tem em vista a exportação rápida de matérias-primas.
A situação da “força-tarefa hidrogênio” – que foi criada pelos dois países em 2021 no âmbito de parceira energética teuto-chilena – também será um tema na conversa com o presidente chileno, Gabriel Boric. Na teoria, em 2050, o Chile poderia cobrir de três a quatro vezes a demanda alemã de importação de hidrogênio verde.
Scholz também deve falar com o presidente argentino, Alberto Fernández, sobre matéria-prima, especificamente, sobre o “ouro branco” da transição energética: lítio. Há dois anos, a montadora alemã BMW explora o metal num lago de sal da Argentina.
A Alemanha quer apoiar Luiz Inácio Lula da Silva na proteção climática. O presidente brasileiro anunciou que quer acabar com o desmatamento. “O ex-presidente Jair Bolsonaro havia extinto os comitês responsáveis pela gestão do Fundo Amazônia“, afirma Katharina Fietz, do Instituto Alemão para Estudos Globais e Regionais (Giga). “Logo após sua posse, Lula reativou esses comitês e a Alemanha liberou então 35 milhões de euros para o mecanismo”, acrescenta.
Situação do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia
Para Lula também se trata também de melhorar a imagem. Depois dos turbulentos anos de Bolsonaro, ele quer promover o Brasil no cenário internacional. A viagem de Scholz vem na hora certa. O presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, esteve em Brasília para a sua posse. O presidente francês, Emmanuel Macron, também já anunciou uma viagem ao Brasil.
O acordo comercial entre o Mercosul e a UE será também um tema que volta ao topo da agenda nas conversas com os chefes de Estados europeus. Devido à política climática de Bolsonaro, o acordo acabou paralisado.
Apesar da resistência do lobby do agronegócio, o Brasil “tem um grande interesse em fechar o acordo”, afirma Fietz. Segundo a especialista, o acordo deve ganhar um novo impulso quando a Espanha assumir a presidência do Conselho Europeu na segunda metade deste ano. “A Espanha é uma grande defensora da zona de livre comércio”.