Search

Alckmin, o gerentão: chefe da transição procura garantir a governabilidade de Lula

Ao priorizar a agenda internacional e delegar a transição a Alckmin, Lula sinaliza que quer ser chefe de Estado, enquanto seu vice atuará como chefe de Poder. O ex-governador de São Paulo, com sua larga experiência e perfil comedido, já exerce influência nos rumos do novo governo, o que tem incomodado os petistas

Compartilhe nas redes sociais

Transição de governo

Ao procurar Geraldo Alckmin para compor a chapa presidencial, Lula não pensou somente na montagem de uma frente ampla para a campanha nem mirou o cacife eleitoral do mais longevo governador de São Paulo. O petista olhou adiante e ponderou que, mais difícil do que vencer Jair Bolsonaro, seria reconstruir o País. Para isso, propôs a Alckmin uma gestão a quatro mãos. Entre as longas conversas trocadas desde junho do 2021, Lula chegou até mesmo a detalhar planos de emendar viagens ao exterior para recolocar o Brasil na posição de protagonista mundial — e, claro, para retomar o próprio prestígio internacional. A mensagem era clara: Alckmin seria o “gerente” da nova administração, e não um estranho no ninho, submisso aos interesses e ordens de grão-petistas. Após o triunfo nas urnas, o próximo presidente apressou-se em sinalizar que as promessas não foram ao vento e comprovou a disposição em partilhar o poder com o pessebista ao nomeá-lo coordenador da equipe de transição.

Para Alckmin, trata-se de uma nova vida. Adversário histórico de Lula e tucano desde 1988, ele lutava para voltar à cena política desde que perdeu a eleição presidencial de 2018 de forma acachapante, e tinha virado um estranho no ninho de seu próprio partido. A recente implosão do PSDB o vingou. Deu razão para ele ter feito o movimento mais ousado de sua carreira: largou a legenda e abraçou a sua nêmesis de São Bernardo do Campo. Em março deste ano, filiou-se ao PSB, jogou-se de corpo e alma em uma campanha que derrotou o bolsonarismo e agora ocupará o segundo cargo mais importante da República. Nessa posição, não pode ser demitido por Lula e ainda tem a possibilidade de se cacifar para sucedê-lo. Mas seu histórico de lealdade e equilíbrio eliminou qualquer temor do petista. Ao contrário, fez do paulista de Pindamonhangaba uma peça-chave para a nova gestão.

Alckmin simboliza o lado sereno e conciliador do novo governo, e não deve assumir nenhum ministério

Benquisto em Brasília, Alckmin simboliza o lado sereno e conciliador do governo Lula 3.0. Seus colegas, os petistas-raiz, pregam a “pacificação”, mas têm encontrado dificuldade em conciliar intenção e prática. A atitude serena e amistosa justifica o apelo de integrantes do meio político, e também do jurídico, para que o ex-governador paulista seja alocado em algum ministério. Representantes das Forças Armadas e do Judiciário, por exemplo, são árduos defensores da nomeação de Alckmin como titular da Defesa, após a instrumentalização do órgão por Jair Bolsonaro. Empresários o querem na pasta de Indústria e Comércio Exterior. Em meio às especulações, ele próprio, por ora, repete a Lula não ter interesse em assumir formalmente uma pasta — quer “transitar livre” e “de forma mais transversal”. O petista não se opôs ao entendimento do vice, mesmo porque reconhece que seria delicado ter de “demiti-lo” eventualmente. “Alckmin não será ministro”, confirmou na última quinta-feira. Para não deixar Alckmin restrito ao gabinete da vice-presidência, Lula cogita colocá-lo à frente do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o antigo “Conselhão”, que será reativado unindo ministros, empresários e membros da sociedade civil.

TRÉGUA INSTITUCIONAL Lula visita com Alckmin o presidente da Câmara, Arhtur Lira, na última quarta-feira (Crédito:ANDRESSA ANHOLETE)

Para aliados próximos dos dois, os recentes gestos de Lula indicam que ele quer atuar como chefe de Estado e designar a Alckmin a função de chefe de governo. A divisão de tarefas foi recebida com surpresa na capital, onde a classe política está acostumada a assistir a relações belicosas entre presidentes e vices — todos se recordam, por exemplo, da carta em que Michel Temer queixou-se a Dilma Rousseff por ter perdido “todo protagonismo político”. Jair Bolsonaro acusou Hamilton Mourão de dar “peruada naquilo que não lhe compete” quando o general falava à imprensa sobre assuntos delicados. Nos anos 1990, Fernando Collor vivia às turras com o vice Itamar Franco. Um contraponto foi Marco Maciel, que não fez sombra a FHC em seus dois mandatos. “Quem anda na garupa não segura as rédeas. Vice anda na garupa. Tem que ser discreto, mas não pode ser omisso”, dizia o pernambucano. Nos seus dois primeiros governos, Lula tinha como vice o empresário José Alencar, que ocupava um papel decorativo, apesar de ter a importante função de referendar o petista diante do setor produtivo. Ainda assim, Alencar costumava dar sustos no titular, ao soltar o verbo publicamente contra os juros altos. Agora, Lula e Alckmin parecem alheios à “tradição maldita” e vivem uma “lua de mel” depois de décadas de rivalidade política. Na campanha, conversavam ao telefone de sete a oito vezes por dia, segundo relatos da secretária do petista, Cláudia Troiano, a interlocutores. O número de contatos diários cresceu depois da vitória.

Próximo vice defende a reforma tributária e pode indicar um caminho de centro para a nova gestão

Os dois preparam a mudança para a capital a fim de facilitar a interlocução, mas não antecipam quando o movimento deve ocorrer. Alckmin já foi convidado por Hamilton Mourão para conhecer o Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente, mas por enquanto a visita não foi marcada. À frente da transição, o vice-presidente eleito, por ora, vive em uma ponte aérea, cumprindo agendas na capital entre terças e quintas-feiras (Lula deve se mudar para Brasília após a viagem à COP27). Na cidade, Alckmin divide-se entre visitas ao Centro de Convenções do Banco do Brasil, onde chefia 31 grupos de trabalho, despachos no tradicional hotel Meliá, no qual recebe parlamentares e governadores, e visitas a nomes graúdos, como ministros do Supremo. Logo na largada, Alckmin viu que terá pela frente tarefas hercúleas.

O primeiro obstáculo que o novo vice encontrou foi o nó do Orçamento de 2023, que, nas palavras do relator Marcelo Castro, “não tem espaço para nada”. Para cumprir as principais promessas de campanha, o governo eleito queria um “waiver” (licença) de R$ 175 bilhões para bancar os projetos emergenciais, como a preservação do Auxílio Brasil, que será rebatizado de Bolsa Família, a R$ 600, e o aumento do salário mínimo acima da inflação. Na última quinta-feira, a proposta virou tirar o Bolsa Família do teto de gastos, de forma permanente. O Congresso, de início, recebeu essas ideias com críticas. Nos bastidores, a alegação é de que Lula quer um “cheque em branco”. Mas as resistências devem ser vencidas. Haverá, claro, um custo político — a portas fechadas, até mesmo integrantes do TCU alertaram que a fórmula da chamada “PEC da Transição”, que exige o aval de dois terços dos deputados e senadores, deixaria a futura gestão “em dívida” com Arthur Lira e Rodrigo Pacheco.

PRIMEIROS PASSOS O vice com Aloizio Mercadante e Gleisi Hoffmann, dia 3 (Crédito:WILTON JUNIOR)

Diante do imbróglio, Alckmin agiu com cautela. Esperou o presidente eleito desembarcar em Brasília, na última quarta-feira, para conversar com os donos da pauta do Congresso. Em ambos os encontros, com Lira e Pacheco, houve uma troca de afagos. Enquanto Lula comprometeu-se a não apoiar um oponente de Lira na disputa pela presidência da Câmara e referendou a opção do PT pela recondução de Pacheco ao comando do Senado, os presidentes da Câmara e do Senado externaram “disposição” em emplacar as matérias necessárias. É o famoso “jeitinho” brasiliense. O cuidado com essa negociação demonstra a preocupação em construir uma base sólida de apoio no Congresso. Lula ainda considera que um dos maiores erros de Dilma Rousseff foi ter insistido em eleger um petista para a presidência da Câmara, contra Eduardo Cunha – a manobra levou ao impeachment. Alckmin também sinalizou nos primeiros dias que o governo eleito não pretende repetir o “revanchismo” de Bolsonaro, que vivia desafiando os outros Poderes. Nesse quesito, joga em perfeita sincronia com Lula. O petista prometeu acabar com as crises institucionais ao visitar a presidente do STF, Rosa Weber, o do TSE, Alexandre Moraes, no mesmo dia, em Brasília (também mostrou que não vai cair na armadilha bolsonarista da contestação da eleição: “Cabe ao presidente aceitar a derrota”, disse secamente ao sair do TSE). Para azeitar a relação nos Estados, o vice eleito ligou para todos os governadores e já começou a recebê-los pessoalmente na capital — o primeiro tête-à-tête, aliás, ocorreu com Ratinho Jr., que fez campanha por Bolsonaro nos dois turnos da eleição. Para garantir a governabilidade no Congresso, o futuro vice-presidente ainda tenta ampliar o leque de apoios entre partidos que não apoiaram a chapa vencedora.

Empresários

O desafio vai além. Os grandes empresários e investidores, para os quais Alckmin atuou como fiador de Lula, acompanham com lupa as primeiras medidas econômicas do petista, que prometeu prudência fiscal, mas, até agora, não mostrou como vai segurar os gastos públicos. O setor financeiro ainda aguarda com apreensão a escolha do futuro ministro da Fazenda. Segundo aliados, Alckmin considera Fernando Haddad um quadro competente e técnico, mas não o vê como a melhor opção para o comando da Economia no momento. O pessebista sonhava com Pérsio Arida ou André Lara Resende, mas nem sequer cogita entrar na bola dividida. “Ele entende que o cargo é sensível para o PT e que a decisão cabe estritamente a Lula. Jamais abriria uma discussão sobre isso”, pontua um nome próximo, sob reserva. Alckmin, porém, não abre mão de ter os pais do Plano Real em assentos estratégicos no governo — seja no Planejamento, seja nos bancos públicos. Trata-se de uma estratégia para tornar a gestão mais palatável ao mercado. Alckmin quer também destravar a reforma tributária nos seis primeiros meses de governo. Arida, que foi o coordenador do programa de Alckmin quando concorreu à Presidência em 2018 e compõe a atual equipe de transição, declarou que “a reforma do IVA seria um enorme avanço ao longo do tempo, ao longo de dez anos. Esse avanço está na mesa e acho que vai acontecer”. Seria um passo ousado, mas ele sempre foi evitado pelo PT.

Enquanto negocia os passos do governo eleito, Alckmin tem sido aconselhado a se blindar do fogo amigo petista — a velha guarda não lida bem com o protagonismo de “forasteiros”. Para a ala “mais nova” do PT, Gleisi e Mercadante parecem decepcionados por não terem sido escolhidos para a coordenação de transição. A maioria do partido, porém, concorda com Lula. Apontam que Bolsonaro poderia dificultar ainda mais a interlocução, caso fosse um petista no cargo. Dado o histórico de conflito do PT com seus parceiros, aliados do pessebista o cercaram de nomes de sua confiança. Foram nomeados na transição, por exemplo, o ex-governador Márcio França, do PSB, que foi seu vice no governo paulista e é aventado para o Ministério de Ciência e Tecnologia ou das Cidades, e o ex-deputado Floriano Pesaro, também egresso do PSDB, cotado para a chefia de gabinete do vice-presidente. “Na política, muitos só respeitam quem fala grosso, e Alckmin não fala. Tem aquele tom mais conciliador, mesmo quando precisaria bater de frente. Por isso é importante que ele não esteja sozinho”, diz um nome do entorno do vice. Os torpedos, aliás, já começaram a circular. Nos bastidores, petistas demonstram desconforto com o que chamam de “ganância” de aliados de Alckmin, que, conforme relatam, ambicionam o controle de estatais e de ministérios e órgãos sensíveis, como a Controladoria-Geral da União. Em uma reunião da Executiva Nacional do PT, no início da semana, quando o vice eleito sequer havia iniciado o “embalo” da transição, já sobraram críticas. O pessebista precisará, como nunca, ter jogo de cintura – talento que já demonstrou no governo de São Paulo e no próprio Congresso, como deputado.

PARCERIA O ex-governador de São Paulo com Lula no congresso do PSB, em abril passado: aposta no casamento político derrotou o bolsonarismo e levou Alckmin ao ápice da carreira (Crédito:Sergio Lima)

Centro

Resta ver como Alckmin vai temperar a próxima gestão, principalmente na vital escolha do caminho econômico que será seguido. Este será um governo de centro? O vice defende ideias liberais e é obcecado pelo controle das contas públicas, o que soa como heresia para os petistas que pregam a intervenção estatal. Lula dá de ombros para o incômodo, que se repete no partido. O futuro presidente deixa claro, há meses, que o pessebista será um homem forte do governo. Ainda na campanha, durante um encontro com empresários da construção civil, valeu-se de uma brincadeira para firmar a posição. “Qual o segredo para você viver tranquilo com um vice, além de escolher um nome de credibilidade e que seja leal?”, indagou à plateia. E concluiu, aos risos: “Empoderar o vice, para ele não ter tempo de pensar em golpe. O governo será de Alckmin também”.

Uma trajetória de tenacidade
Novo vice-presidente enfrentou obstáculos e precisou se reinventar após três décadas no PSDB

No próximo ano, Geraldo Alckmin completará 50 anos na vida pública. A trajetória bem-sucedida começou aos 21 anos como prefeito de Pindamonhangaba (SP). De vereador a vice-presidente, depois de governar o estado mais rico da Federação, ele pavimentou seu caminho com discrição e tenacidade e precisou se reinventar. Para ascender, valeu-se da lealdade a Mário Covas, sua grande referência, de quem foi vice até o suceder, quando o tucano morreu em 2001. Fazia o meio de campo entre o genioso chefe e prefeitos.

MENTOR Alckmin ganhou protagonismo como vice de Mário Covas no governo de São Paulo. Ele o sucedeu e governou ao longo de 12 anos e quatro mandatos no estado (Crédito:SERGIO TOMISAKI)

A parceria parece agora ser reeditada com Lula. Os dois têm temperamentos bem diferentes. Enquanto Lula capricha nas metáforas futebolísticas, Alckmin gosta de contar “causos”, as histórias típicas do interior de São Paulo. E conta essas parábolas com calma, didaticamente. Usa o tom professoral e aprecia expressões como “amassar barro” e “calçar as sandálias da humildade”.

O homem forte do novo governo gosta de dispensar os carros oficiais. Usa táxi para demonstrar humildade e toma cafezinho com populares. Era visto com frequência tomando pingados (o café com leite dos paulistas) em padarias. Mantém a prática. No último dia 3, em Brasília, dispensou a comitiva oficial e mandou o motorista parar em uma padaria, onde pediu café e comeu um bauru com auxiliares, posando para fotos.

O jeitão “low profile” caiu no gosto dos paulistas. Contribuiu ainda para cristalizar a sua popularidade a forte religiosidade e o amor pela família. Venera a mulher, dona Lu, com quem é casado há 43 anos. Ele vai à missa todos os domingos. Passou uma grande provação com a morte do filho Thomaz, piloto, em um acidente de helicóptero, em 2015. Carrega um santinho com o retrato dele até hoje. O novo vice-presidente gosta de citar os santos católicos e usa suas trajetórias como lições de vida.

Sua carreira começou ainda durante a ditadura no MDB, partido pelo qual exerceu quatro mandatos, de vereador a deputado constituinte. Até hoje, seus dias de glória haviam sido no PSDB, do qual foi fundador. Mas, também lá, precisou remar contra a corrente. Em 2006, Alckmin se candidatou à Presidência, a contragosto de outras lideranças do PSDB. Acabou derrotado por Lula. Voltou a tentar chegar ao Planalto em 2018, mas foi novamente “cristianizado” por boa parte do partido. Decepcionado, retornou à carreira de médico e até participou de um programa de TV em São Paulo, dando dicas de saúde. Sondado por Lula, deixou o partido que lhe abrigou por 33 anos e fez uma aposta. No final das contas, faturou alto.

HUMILDADE O novo vice é conhecido por tomar café em padarias com populares (Crédito: Zanone Fraissat)

O presidente do PSB, Carlos Siqueira, diz que a forma de fazer política de Alckmin complementa a de Lula. “Foi um casamento perfeito”, comenta. “Brincamos que Alckmin parece mineiro e não paulista. É ponderado, racional, equilibrado”, diz. O perfil discreto já valeu ao paulista o apelido de “picolé de chuchu”. Agora, ele já se sente à vontade com o apelido. Quando foi apresentado na campanha de Lula, brincou que “lula é um prato que cai bem com chuchu”.