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Bolsonaro enfrenta 28 processos que podem levá-lo para a cadeia após deixar o governo

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Jair Bolsonaro habitou o Alvorada com medo da cadeia por metade do mandato presidencial. Admitiu isso pela primeira vez em agosto de 2021, quando, no auge da crise com o Supremo Tribunal Federal, buscava insuflar sua horda. “Eu tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, morto ou a vitória”, declarou. “Pode ter certeza que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa”, emendou o capitão, que, dias depois, afirmou que não acataria mais decisões de Alexandre de Moraes. O risco do xilindró ganhou força à medida que o presidente dobrava a apostava de incitar a extrema-direita contra as instituições. Seu objetivo era, após ser reconduzido ao Planalto, manter os órgãos de investigação sob rédea curta. Como foi derrotado, o plano ruiu. Não à toa, isolou-se na residência oficial, voltando a despachar apenas 20 dias após perder o pleito. A roupagem de mártir não lhe serviu — e chegou a hora de acertar as contas com a Justiça.

Bolsonaro é atormentado por pelo menos 28 processos no STF, no TSE e na Justiça Federal. Como na mitologia, o mandatário sente a espada de Dâmocles pendendo sobre sua cabeça. Por isso, passou a calcular cuidadosamente seus passos depois da eleição. Como um ventríloquo, começou a usar Valdemar da Costa Neto para falar em seu lugar. Por pressão do capitão, o manda-chuva do PL valeu-se da estrutura partidária para contestar o resultado do pleito e apontou, sem provas, problemas em urnas. Trata-se de uma via de mão dupla: enquanto Valdemar atende aos caprichos do Planalto, Bolsonaro mantém a promessa de ceder o capital político para impulsionar o partido nas eleições municipais de 2024 e voltar à cena em 2026. O ex-mensaleiro não é o único personagem do show de horrores. Candidato a vice na chapa de Bolsonaro, o general Walter Braga Netto recebe aliados do presidente na mansão que serviu como comitê da campanha. São políticos e militantes engajados na defesa de uma intervenção militar, conforme revelou o portal Metrópoles.

”XERIFÃO” Ministro Alexandre de Moraes é relator de inquéritos que ameaçam Bolsonaro e não teria disposição de fazer algum acordo para livrá-lo da punição (Crédito:EVARISTO SA)

Enquanto extremistas percorrem o País pregando um golpe, o presidente mantém-se em silêncio monástico e foge dos holofotes. Faz isso não somente por causa da erisipela que o acometeu e que, aliás, já deu trégua — porque, mesmo recluso, ele poderia muito bem conversar com seus apoiadores radicais por meio das redes, como sempre fez. Trata-se de um cálculo jurídico, segundo aliados. Ele quer evitar a prisão. Os maiores riscos para Bolsonaro, a curto e longo prazo, concentram-se nos processos que correm no STF, em especial o inquérito das fake news.

Inquérito vai crescer

Criminalistas e constitucionalistas lembram que o processo, aberto em 2019, dois anos depois passou a mirar diretamente no presidente. Ele crescerá com os acontecimentos recentes. Receberá a identificação dos caminhões e veículos que participaram ativamente dos bloqueios e das manifestações pós-eleições. Pelo tempo de tramitação e diligências cumpridas, que incluem a quebra de sigilo de aliados do Planalto, buscas e apreensões e depoimentos, crê-se que essa seja a ação mais robusta contra o capitão até o momento. “Desde o início do governo, as fake news ganharam grande proporção. É muito grave porque a desinformação espalha pânico coletivo. É um terrorismo digital”, afirma o professor de Direito Constitucional e Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie Flávio de Leão Bastos. “Existem indícios de ataques ao Estado de Direito e ao sistema eleitoral. Há previsão de prisão para isso.” O professor sublinha que, como o processo corre sob segredo de Justiça, não há como analisar se existem fatores suficientes para a condenação e a prisão de Bolsonaro. Pondera, contudo, que, se o inquérito permanecer no Supremo mesmo após a perda do foro privilegiado pelo presidente, o caminho para a punição pode ser mais curto, já que não haverá possibilidade de recursos em várias instâncias.

Para especialistas, é possível que Moraes, conhecido pelo estilo “xerifão”, mantenha em suas mãos o inquérito das fake news, assim como o das milícias digitais. “Nesses casos, o que fixa a autoridade do STF para supervisionar as investigações não é a condição do investigado (autoridade com foro ou cidadão comum), mas a vítima. Como os processos tratam de ataques institucionais a Cortes Superiores, fica com o Supremo”, explica Davi Tangerino, professor de Direito Penal da UERJ. Os repetidos ataques de Bolsonaro ao STF e ao TSE viraram um problema agora que ele voltará à planície e fecharam a porta para uma eventual “anistia branca”. Alguns ministros já externaram o entendimento de que o Supremo poderia “tranquilizar” Bolsonaro e explicar que não há grande risco de prisão, caso ele não cometa novos crimes. Mas ressaltam que isso caberia apenas a Moraes. E pontuam que ele não demonstra disposição a um acordo e já sinalizou querer manter “a faca na cabeça do Bolsonaro”. Ou seja, se o presidente “fizer alguma besteira”, há instrumentos para penalizá-lo. Moraes não quer ficar descoberto.

Tangerino diz que, em tese, apenas fatos novos poderão ensejar a prisão provisória ou permanente de Bolsonaro. “Michel Temer foi preso preventivamente logo depois do final de seu mandato e a medida acabou revertida posteriormente. Esse tipo de prisão só se justifica se ainda houver perigo na manutenção em liberdade do cidadão. Assim, a preventiva caberia por fatos cometidos após Bolsonaro deixar o Planalto, ou no apagar das luzes, desde que haja um horizonte de que, cessado o mandato, o perigo ainda subsista”, pontua. É isso que assusta o mandatário.

Crime em flagrante

Na avaliação de auxiliares próximos e de ministros do STF, é a esse risco que Bolsonaro está atento. Sabe que, se estimular iniciativas golpistas agora, esvaziará a tese da defesa de que ele sempre se limitou a bravatas. Partirá para o crime em flagrante. Com essa análise concorda Thiago Bottino, da Faculdade de Direito da FGV-RJ. “A Lei de Segurança Nacional foi revogada e o crime de ‘tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito’ foi substituído pelo crime de ‘Golpe de Estado’, previsto no o Código Penal. Nesse caso, seria preciso demonstrar as ações violentas iniciadas por ele ou das quais ele tenha participado.”

Além dos crimes contra a democracia, Tangerino classifica os processos que tratam da negligência do presidente no enfrentamento da pandemia como “os mais consistentes”. As ações se baseiam em 10 terabytes de documentos colhidos pela CPI da Covid. As petições, que, separadas, imputam nove crimes a Bolsonaro, do charlatanismo à malversação de dinheiro público e falsidade ideológica, estão travadas há meses nas mãos da vice-procuradora-geral da República Lindôra Araújo, que na prática blinda o presidente. Mas a expectativa é de que o STF reverta essa paralisia. Luís Roberto Barroso, relator dos casos mais delicados, avalia mantê-los sob sua lupa e evitar o envio à primeira instância, o que ajudaria a procrastinação. A justificativa é que os autos guardam provas que comprometem outros agentes públicos, que seguirão com o foro privilegiado. O futuro dos demais processos ainda é uma incógnita.
Relator da CPI, Renan Calheiros faz coro a Tangerino e repete que a comissão não atribuiu nenhum tipo de delito sem as provas correspondentes. “Isso seria até leviano.” O senador emenda que os casos não andaram em decorrência da “prevaricação da PGR”. “O presidente teve responsabilidade comprovada no auge da pandemia e agora reincide. Sabotou a ciência, boicotou e atrasou a vacinação, prescreveu remédios ineficazes, montou estruturas paralelas de poder e, agora, novamente demonstra sua índole ao atrasar a compra das vacinas de segunda geração que cobrem as mutações do vírus. Trata-se um genocida que irá pagar pela mortes que carrega nos ombros”, dispara.
Tangerino afirma que outros casos ainda precisam ser aprofundados para apurar a responsabilidade do presidente. O professor de Direito Penal cita como exemplo o inquérito que mira o ex-ministro Milton Ribeiro e pastores-lobistas que negociavam propina em troca da recursos do FNDE. Em áudios vazados, o ex-ministro declarou que priorizava recursos para as prefeituras determinadas pelos religiosos a pedido de Bolsonaro — depois, recuou. Essa, aliás, não é a única suspeita que recai sobre o presidente. Há indícios de que ele avisou Ribeiro sobre o plano da PF de cumprir buscas e apreensões e interferiu no processo de prisão do aliado.

No TSE, Bolsonaro também não terá vida fácil. Nomes próximos ao Corregedor-Geral Eleitoral, Benedito Gonçalves, afirmam que o ministro deve manter a postura adotada durante a campanha, que foi de marcação cerrada contra os crimes eleitorais. Ele deve garantir celeridade às 13 ações de investigação judicial eleitoral (AIJEs) que miram Bolsonaro por abuso de poder econômico, político e dos meios de comunicação. Passadas as eleições, Benedito vai se debruçar sobre os pedidos de diligências dos processos. A tendência é que boa parte deles seja deferida, dado o perfil linha-dura do ministro, semelhante ao dos colegas Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Edson Fachin. Para aliados de Lula, a ação mais sensível é a que mira Bolsonaro e mais 80 pessoas físicas e jurídicas por um “engendrado ecossistema de desinformação” que buscou fortalecer a candidatura do capitão a partir de notícias falsas contra adversários políticos. Na ação, o ministro chegou a determinar a suspensão, por 13 dias, da monetização de canais de extrema-direita — Brasil Paralelo, Foco do Brasil, Folha Política e Dr. News — e da exibição, por qualquer meio, do documentário “Quem mandou matar Jair Bolsonaro?”.

FILHOS ENCRENCADOS Os irmãos Eduardo (esq.), Jair Renan, Carlos e Flávio são investigados: preocupação de Bolsonaro também é com a situação da família (Crédito:Divulgação)

O processo é perigoso para o presidente. Os advogados de Lula defendem a quebra dos sigilos bancário, telefônico e telemático de aliados de Bolsonaro para que o TSE apure se eles custearam a produção e publicação de conteúdo nas redes sociais para favorecer o mandatário. Requisitam, ainda, que todo o material da ação seja compartilhado com o inquérito das milícias digitais, que tramita no STF. Se os pedidos forem atendidos, fica aberto o caminho “para matar dois coelhos com uma cajadada só” — ou seja, provocar a inelegibilidade de Bolsonaro por oito anos, na seara eleitoral, e golpear o chefe do Planalto na área criminal, fortalecendo as acusações de associação criminosa e de ilícitos contra a democracia. A expectativa no PT é a de que os dados obtidos sejam suficientes para impedir o engavetamento da ação pelo sucessor de Benedito — Raúl Araújo, afinado a Bolsonaro, assume o posto em novembro de 2023.

Campo minado

O Tribunal de Contas da União é outro campo minado para o presidente. A Corte passa uma lupa sobre a gastança de Bolsonaro, o que pode lhe render processos por improbidade administrativa. O TCU analisa, por exemplo, o uso do cartão corporativo em motociatas e deve abrir uma auditoria sobre a elevação das despesas presidenciais de agosto a outubro, período da campanha eleitoral. Na sociedade civil e no Ministério Público, além do próprio PT, há ainda um movimento pela revisão de processos delicados para Bolsonaro, sobretudo na Educação e Saúde. É outra frente que deve avançar após ele deixar o poder. “Mais do que isso, creio que precisamos analisar a relação do governo com as milícias. A família Bolsonaro nunca fez questão de esconder os laços com esse grupo. Cobrar a retomada das apurações sobre os cheques de Fabrício Queiroz ao clã e a compra de 51 imóveis. Voltar a escândalos protagonizados por Ricardo Salles, com o aval de Bolsonaro, e a convênios suspeitos, como os dos ônibus escolares e o dos caminhões de lixo superfaturados, além do orçamento secreto”, defende o coordenador do grupo Prerrogativas (que apoia Lula), Marco Aurélio de Carvalho. “Não é uma agenda de revanchismo e vingança. Bolsonaro tem de pagar pelos crimes que a gente sabe que cometeu. Ele é um caso de polícia.”

PÓS-ELEIÇÃO Comitê da campanha de Jair Bolsonaro à reeleição no Lago Sul, em Brasília: o general Braga Netto se reúne no local com políticos e militantes que pedem um golpe militar (Crédito:Gabriela Bil)

Esse cenário desfavorável explica a iniciativa de Bolsonaro de negociar com Valdemar um cargo na Executiva do PL, com a garantia de uma equipe de advogados. O presidente vê no partido não somente uma casa para ressuscitar o seu projeto de poder, mas um bote salva-vidas para fugir da cadeia e tentar proteger os filhos. Do 01 ao 04, todos estão encrencados. Flávio pode ver a ressurreição da investigação sobre as rachadinhas da Alerj. Carlos está prestes a ser denunciado em um esquema de funcionários fantasmas e figura entre os principais alvos do inquérito das fake news. Eduardo está na mira do STF pelo protagonismo nas milícias digitais. E Jair Renan responde por tráfico de influência. À margem do poder, a família não terá a sombra e água fresca que o Planalto lhe garante, a não ser que o Congresso crie a figura do “senador vitalício” para ex-presidentes, manobra que parece longínqua. Certa vez, o capitão disse não ter interesse na medida. Àquela altura, porém, a cadeia não estava tão próxima dele e de sua prole.

Com informações do Istoé