Segundo os dados do Dieese, divulgados pelo site Poder360, as greves do ano passado se concentraram em três grupos, dois deles ligados ao funcionalismo público (servidores de saúde e de educação) e outro misto (funcionários e motoristas de empresas de transporte coletivo). Foram dois os eixos que sustentaram as mobilizações: a modesta taxa de crescimento da economia e o setor público federal sem conceder aumentos relevantes de salários há quatro anos.
Embora a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), referente ao mês de novembro, tenha apontado queda no desemprego e na informalidade, os fenômenos da precarização do trabalho e do achatamento de salários podem ser fatores que explicam esses dados aparentemente promissores.
Nesse sentido, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já conseguiu desarmar a primeira greve do ano. Projetada pelos entregadores de aplicativos para ocorrer na última quarta-feira (25), ela foi cancelada após uma reunião dos representantes do setor com o governo federal.
No encontro, os entregadores apresentaram um extenso documento de reivindicações, cujas demandas serão avaliadas pelo Ministério do Trabalho.
Mas, afinal, o governo Lula enfrentará muitas greves, sobretudo em 2023?
Paulo Henrique Blair de Oliveira, especialista em direito constitucional e direito do trabalho, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), aponta duas forças que estão tensionando em sentido oposto a uma enxurrada de greves: o momento de restrição econômica e o receio da demissão após uma greve.
No último caso, Oliveira explica que é inconstitucional ser demitido por fazer greve. A empresa, porém, pode alegar que a dinâmica resultante do período de greve (interrupção das atividades econômicas de uma empresa, por exemplo) pode causar uma dispensa posterior. Ou seja, o medo de ser demitido e da dificuldade de encontrar um novo emprego é um empecilho real.
Um fator que distensiona o campo para o novo governo é a disposição que ele próprio demonstrou para reverter pontos da reforma trabalhista, feita em 2017 pela gestão do presidente Michel Temer (MDB).
“Essa questão, especialmente […] [no que diz respeito ao] contrato intermitente, que é controverso e de constitucionalidade duvidosa, está parada no Supremo [Tribunal Federal, STF]. Há também a pressão dos sindicatos no sentido de revisão desses aspectos da legislação trabalhista”, diz o professor da UnB.
Especificamente no caso dos trabalhadores de aplicativos, ressalta Oliveira, “existe disposição do governo para criar marcos regulatórios“.
“Porque, a depender das empresas de tecnologia que os contratam, está tudo bem assim, da maneira como está. Mas em todos os lugares do mundo está havendo regulamentação. É preciso regulamentar, senão vira um faroeste.”
O professor elenca que autoridades de trânsito apontaram que o número de acidentes com motos e carros aumentou 35% nos últimos 18 meses.
Isso, em sua percepção, não aconteceu por causa de um maior número de veículos circulando, mas porque aplicativos de entrega e de carros impõem metas a cumprir.
Ou seja, se há atrasos, há menos alocações de chamadas para determinado motorista.
“[…] Greves motivadas por pedidos de revisão desses cenários estão no horizonte e são possíveis. Mas esse governo tem disposição para negociar”, aponta. Ele ressalta, porém, que “o Congresso Nacional mantém, majoritariamente, parlamentares com vínculos com o patronato. Não adianta prometer a revisão das regras se o Congresso vetar”.
Oliveira também aborda a questão dentro da perspectiva do direito do trabalho. Segundo ele, em uma democracia o direito existe para que “o conflito exista sem que as partes se destruam mutuamente“.
A relação entre capital e trabalho sempre será tensa e conflituosa, pondera.
“Achar que o país não funciona [por conta de] greve é tolice, pois todos os mais desenvolvidos têm greves a todo o momento. Tem que parar com essa ideia de que o Brasil tem selo de atraso civilizatório por causa de greves.”
Estaria o governo Lula preparado para essa negociação, seja com os trabalhadores, seja com o Congresso? Para o professor da UnB, a resposta é sim.
“Se este governo não estiver preparado, nenhum outro governo esteve ou estará. Lula foi forjado na luta sindical. É uma pessoa que sabe o que é ser operário. Na história da república brasileira nunca tivemos uma pessoa que foi operária como presidente. Nem a Dilma [Rousseff, ex-presidente petista]. O governo tem preparo, em tese, para as negociações políticas que vão ser enfrentadas no Congresso Nacional”, conclui.