Nesta quarta-feira (19), Rússia e Coreia do Norte assinaram Tratado de Parceria Estratégica Abrangente, inaugurando momento para a inserção internacional de Pyongyang. O paulatino fim do isolamento diplomático da Coreia do Norte não passa despercebido pelo Brasil, que também investe no estreitamento dos laços bilaterais.
De acordo com o presidente russo Vladimir Putin, o novo acordo assinado com a Coreia do Norte prevê a assistência militar mútua em caso de agressão externa. Para o líder norte-coreano Kim Jong-un, o compromisso garante uma base jurídica para elevar as relações russo-coreanas a um novo nível.
“As relações entre nossos dois países estão no caminho de um desenvolvimento mais promissor e próspero, para alcançar o progresso dos dois países e aumentar o bem-estar de seus povos por meio da cooperação ativa entre si em vários campos, incluindo política, economia, cultura e assuntos militares”, declarou Kim Jong-un. “Os tempos mudaram. O status da República Popular Democrática da Coreia e da Federação da Rússia na estrutura geopolítica mundial também.”
Ao que tudo indica, o governo brasileiro não está alheio às mudanças a que Kim Jong-un se refere. Após anos de congelamento nas relações com a Coreia do Norte, o Itamaraty está tomando medidas fundamentais para retomar os contatos.
“Podemos ver nas últimas semanas uma mudança significativa da relação entre o Brasil e a [República Popular Democrática da] Coreia”, disse o presidente do Centro de Estudos da Política Songun do Brasil, Lucas Rubio, à Sputnik Brasil. “O Brasil acaba de nomear um embaixador para trabalhar na Coreia do Norte, depois de anos nos quais a embaixada brasileira operava com um só funcionário.”
Brasil e Coreia do Norte estabeleceram relações diplomáticas em 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. No entanto, a embaixada brasileira em Pyongyang foi inaugurada somente em 2005, já sob o primeiro governo Lula.
“Mas, desde o final do governo Dilma, as relações passaram por um período de congelamento, no qual o Brasil reduziu significativamente suas relações comerciais e políticas com a [República Popular Democrática da] Coreia”, lamentou Rubio. “Por isso, o fato de a embaixada agora estar funcionando a plenos pulmões é importante.”
Ainda que a retomada das relações comerciais possa levar alguns meses, o fluxo garantia o acesso brasileiro a produtos tecnológicos norte-coreanos, como componentes para a fabricação de computadores e peças voltadas para maquinário industrial. Em troca, o Brasil vendia produtos agrícolas, como alimentos e grãos, principalmente do complexo soja.
“O Brasil tem muito a ganhar com o acesso à tecnologia norte-coreana, inclusive no setor espacial”, notou Rubio. “A [República Popular Democrática da] Coreia tem tecnologia de lançamento de satélites, foguetes e lançadores. O Brasil já tentou investir nessa área e teve um programa, que teve um fim muito triste com o acidente na base de Alcântara.”
Para obter sucesso em seu programa espacial, a Coreia do Norte precisou investir na formação de quadros qualificados, o que garante outra fonte de cooperação potencial com o Brasil, acredita o presidente do Centro de Estudos da Política Songun do Brasil.
“Os norte-coreanos possuem uma educação pública de altíssima qualidade, com amplo acesso da população à educação”, considerou Rubio. “Nesse sentido, o Brasil pode explorar perspectivas na área de interação cultural com os norte-coreanos.”
O contato entre as sociedades brasileira e norte-coreana é escasso, em função do isolamento internacional imposto ao país pelas potências ocidentais. Pyongyang ensaia maior abertura do seu setor de turismo, mas por enquanto foca em atrair russos e chineses para seus resorts de férias.
O historiador Rodrigo Ianhez é um dos raros brasileiros que estiveram na Coreia do Norte a turismo. Segundo ele, a realidade norte-coreana contrasta com a imagem veiculada diuturnamente na mídia ocidental.
“De tanto a mídia nos bombardear com informações negativas, a maior surpresa – que não deveria ser uma surpresa – é a de que a Coreia do Norte é um país normal”, disse Ianhez à Sputnik Brasil. “As pessoas são como nós, jogam futebol na praia, pescam e vivem a vida delas. A tentativa da mídia de desumanizar os norte-coreanos, como se fossem robôs, é absurda, fruto de racismo e orientalismo.”
Ianhez considerou a hospitalidade norte-coreana similar à latino-americana, dizendo que “o único choque para quem vem da América Latina, é que nós convivemos com a fome e extrema pobreza de maneira diária e muito mais intensa do que eu pude observar na Coreia do Norte”.
Fim do isolamento?
A Coreia do Norte é alvo de sanções abrangentes impostas não só pelos países ocidentais, mas pelo Conselho de Segurança da ONU. Durante sua estadia em Pyongyang, o presidente russo Vladimir Putin se opôs à “prática de aplicação de sanções e restrições politicamente motivadas”.
“O regime restritivo indefinido do Conselho de Segurança da ONU contra a República Popular Democrática da Coreia, inspirado pelos Estados Unidos e seus aliados, deve ser reconsiderado”, declarou Putin. “A Rússia está pronta a seguir com seus esforços políticos e diplomáticos para eliminar a ameaça de uma recaída em um conflito armado na península coreana e para construir uma arquitetura de paz e estabilidade de longo prazo com base no princípio da segurança indivisível.”
No entanto, a retirada das sanções à Coreia do Norte não atende aos interesses dos EUA, que fortalece seus laços militares com a Coreia do Sul e Japão de maneira inédita. Os exercícios bélicos realizados com assistência dos EUA na fronteira entre as duas Coreias são cada vez mais frequentes e conduzidos a fim de ensaiar uma invasão militar da Coreia do Norte.
“A Coreia do Norte, além de estar sob sanções, se encontra em constante expectativa de eclosão de um conflito há mais de 70 anos, pelo menos desde o início da Guerra da Coreia no início da década de 50”, notou o historiador Ianhez. “Devemos lembrar que, ao final da guerra, foi assinado um armistício, e não um acordo de paz. A situação é de constante tensão e levou a Coreia do Norte a tomar as medidas militares que julgou necessárias.”
Durante sua estadia na Coreia do Norte, o presidente russo Vladimir Putin reconheceu que “Pyongyang tem o direito de tomar medidas razoáveis para fortalecer sua própria capacidade de defesa, garantir a segurança nacional e proteger a soberania”.
Em um contexto de crescentes tensões geopolíticas no continente euroasiático, a Coreia do Norte desempenha papel importante para Rússia e China, que devem apostar na sua reintegração às atividades internacionais.
“A tríade Rússia, China e Coreia do Norte é muito mais importante para o equilíbrio da balança global do que as pessoas imaginam. Rússia e China são países imensos territorialmente, mas a Coreia do Norte garante acesso a esses dois países”, disse Rubio. “Ela é uma zona de península muito sensível, que tem fronteira justamente com esses dois gigantes, que estão atualmente mudando a dinâmica global das relações políticas e econômicas.”
Nesse contexto, a reintegração da Coreia do Norte às atividades internacionais poderá contribuir para a segurança euroasiática. Para Rubio,”a Coreia do Norte é um país que faz parte da comunidade das nações e não pode ser apartada de fora para dentro como tem acontecido”.
“A Coreia do Norte não deveria ser impedida de dar a sua voz, sua opinião, de mostrar a sua cultura e o seu jeito de viver. Não é mais aceitável em um mundo que está mudando a sua forma de fazer política, de fazer diplomacia, que um país seja deixado de lado, apenas por ter escolhido um sistema econômico político diferente dos demais”, concluiu o especialista.
Entre os dias 18 e 19 de junho, o presidente russo Vladimir Putin realizou visita oficial à Coreia do Norte, a primeira de um chefe de Estado da Rússia em mais de duas décadas. Na ocasião, os países assinaram o Tratado de Parceria Estratégica Abrangente e debateram o cronograma de futuras reuniões de alto nível. O presidente russo seguiu viagem rumo ao Vietnã, onde cumpre agenda oficial entre os dias 19 e 20 de junho.