Do norte do México ao extremo sul da Argentina, o imperialismo norte-americano sempre esteve presente na América Latina, seja de forma econômica, política ou militar. Um dos braços que buscam demonstrar essa hegemonia é o Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM), cuja atuação tem seus primeiros registros ainda em 1903, no Panamá, quando o Exército atuou para assegurar o controle da ferrovia que conectava os oceanos Pacífico e Atlântico.
Já se passou mais de um século, e o órgão militar de Washington continua a agir para trazer desestabilidade para a região. Desta vez, diante do acirramento das tensões entre Venezuela e Guiana, os EUA decidiram enviar a comandante do SOUTHCOM, Laura Richardson, para cumprir uma agenda com o governo de Georgetown — os dois países sul-americanos mantêm uma disputa histórica por Essequibo, território que corresponde a dois terços da Guiana e onde foram descobertas grandes reservas de petróleo nos últimos anos.
No fim do ano passado, Caracas chegou a realizar um referendo que aprovou a incorporação do território, e na última quarta-feira (3) foi promulgada a lei que cria o estado venezuelano da Guiana Essequiba. No dia seguinte, o governo do presidente Nicolás Maduro denunciou a instalação de bases militares secretas do Comando Sul, além de núcleos da CIA, agência norte-americana de inteligência, ao longo de Essequibo.
Enquanto os EUA não ajudam em nada a conter as tensões, países como o Brasil e a Comunidade do Caribe (Caricom) atuam para evitar um conflito armado na região e chegaram a viabilizar um encontro entre Maduro e o homólogo Irfaan Ali, trabalho que pode cair por terra diante dos últimos acontecimentos.
O jurista e editor da Autonomia Literária, Hugo Albuquerque, enfatiza à Sputnik Brasil que a ação estratégica norte-americana na Guiana é motivada principalmente pelo petróleo, cujas reservas em Essequibo já são exploradas pela ExxonMobil (empresa multinacional de petróleo e gás dos Estados Unidos).
“Ocorre de uma maneira atabalhoada [a extração do óleo na região] e sem licenciamento ambiental, em uma região em disputa há muito tempo. A Venezuela nunca desistiu do seu pleito legítimo por Essequibo, e quando se explora petróleo lá, sabe-se muito bem o que está sendo feito. Há um interesse norte-americano em extrair a riqueza natural diante da atual condição de conflagração global, pelo fato de terem aplicado sanções à Rússia, o que aumentou o preço do barril. Com isso, a Guiana acaba sendo uma alternativa”, pontua.
Tem eleição para presidente na Venezuela?
Todos esses episódios se desenrolam em meio ao processo eleitoral na Venezuela, cuja votação para a presidência acontece no dia 28 de julho e, diante de 13 candidatos, promete ser uma das mais concorridas dos últimos tempos.
“O problema é que o governo Biden muito provavelmente tramava algum tipo de manipulação para trocar o governo Maduro intervindo nas eleições venezuelanas de alguma forma, o que a autoridade eleitoral venezuelana bloqueou. Na verdade, isso faz com que os Estados Unidos queiram desestabilizar a Venezuela a partir da Guiana, mas não é apenas isso em matéria de América do Sul”, explica o especialista.
Conforme o editor da Autonomia Literária, há envio de militares norte-americanos a países como Peru e Equador, que enfrentam graves problemas políticos nos últimos anos, além do anúncio de instalação de uma nova base em Ushuaia, no extremo sul da Argentina, em meio à reaproximação com o país após a vitória de Javier Milei. “E também há uma questão de militarização do rio da Prata, com o governo argentino autorizando os norte-americanos a penetrarem inclusive no rio Paraná, o que é um cerco muito problemático, inclusive para o Brasil“, argumenta Hugo Albuquerque.
Para o analista, intervir na Venezuela é uma parte importante da estratégia de Washington em manter o domínio geopolítico na América do Sul — soma-se a isso a entrada de um aliado importante, a Argentina, que tem criado atritos com Caracas e até a Colômbia nos últimos meses.
“E, claro, em breve confrontará o Brasil […]. O objetivo, basicamente, é ter controle sobre os fluxos energéticos e, tudo leva a crer também, [exercer] uma pressão adicional ao Brasil como membro do BRICS. Eles evitaram que a Argentina entrasse no grupo e querem confrontar o Brasil agora. A Argentina, me parece, é uma cabeça de ponte nesse plano estratégico, junto com governos fracos e desestabilizados, que admitem a entrada de tropas americanas, como é o caso do Equador, também o caso do Peru”, acredita.
Como os Estados Unidos garantiram sua hegemonia no continente americano?
Já a professora de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Miriam Gomes Saraiva acrescenta à Sputnik Brasil que os Estados Unidos buscam dizer com a iniciativa que “se o governo Maduro exagerar, pode chegar a ter uma situação” de desequilíbrio horrível. “É claro que a presença dos Estados Unidos ou de, digamos, representantes dos Estados Unidos na Guiana, a possibilidade de haver uma base militar norte-americana ali é um elemento de tensão, primeiro, por questões de ordem política e discursiva“, ressalta.
Além disso, a especialista lembra que a presença de atores externos e alheios às questões regionais sempre levam a uma grande desestabilização e retiram o poder local de pacificação. “Quando você tem desentendimentos e conflitos com poderes externos à região que operam, causam um grande desequilíbrio. E, muitas vezes, fazem com que os conflitos sejam bem mais longos do que deveriam ser. Quando você não tem os externos, quem é mais forte ganha, quem é mais fraco perde. Mas, se você tem os externos, essa correlação de forças desequilibra. Então, eu acho que sim, aumenta a tensão, no sentido que ela passa um pouco para um risco mais próximo do real de que haja um conflito”, diz.
Já o professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA), Charles Pennaforte, lembra à Sputnik Brasil que desde a época do ex-presidente Hugo Chávez, a Venezuela se aproximou de outros polos geopolíticos, principalmente China e Rússia. “Isso faz com que os Estados Unidos também se movam no sentido de diminuir, ou seja, de ficar sempre monitorando o que está acontecendo para tentar atuar de um modo geral para impedir essa entrada de países de adversários.”
O especialista acrescenta ainda que há uma reativação do Southcom, principalmente na região do Atlântico Sul, nos últimos anos. “Mas não vejo isso como uma questão de desestabilização no momento ou um grande problema […] o que acontece com qualquer potência. Ela vai tentar sempre procurar se manter ativa, demonstrando para os países que nós estamos aqui e nós estamos sempre participando e tentando fazer parte das decisões””, argumenta.