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Chips cerebrais: analistas apontam os prós e contras de transformar seres humanos em ‘semimáquinas’

Em fevereiro, Elon Musk anunciou que sua empresa Neuralink havia realizado o primeiro implante de chip cerebral em um paciente com paralisia.

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Em fevereiro, o magnata do setor de tecnologia Elon Musk anunciou que sua startup de chips cerebrais, Neuralink, havia realizado o primeiro implante de chip cerebral em um ser humano.

O implante é parte de uma série de testes a serem feitos com pacientes que se voluntariaram para o estudo com o dispositivo, que visa melhorar a qualidade de vida de pessoas afetadas por condições como paralisia, tetraplegia e esclerose lateral amiotrófica, entre outras, que limitem os movimentos.

O anúncio da Neuralink apontava que o paciente que teve o chip implantado já estava conseguindo controlar o cursor de um mouse de computador usando apenas os pensamentos.

A notícia promete revolucionar a medicina e faz parte de uma tendência em ascensão que também é explorada pela China. Também em fevereiro, uma equipe da Universidade de Tsinghua, na China, anunciou que havia implantado um dispositivo em um cérebro de um homem que estava paralisado há 14 anos, e que conseguiu recuperar algumas habilidades motoras, como beber uma garrafa de água sozinho.

Porém a tendência levantou uma série de questionamentos na comunidade médica e científica, sobre questões éticas, jurídicas e, acima de tudo, sobre segurança de dados.

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam quais são os prós e contras dessa nova tecnologia, que eles apontam ser uma tendência inevitável.

Para Washington Fonseca, especialista em direito médico, mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), vice-presidente para as Américas da rede BGI Global e sócio do escritório Fonseca Moreti Advogados, a preocupação em torno do tema é totalmente legítima, por conta da falta de clareza em relação aos testes da Neuralink.

“Não existe nenhum elemento claro na realização dos testes, de como são conduzidos, quais são os princípios éticos utilizados, quais são as técnicas, tudo o que vem sendo implementado para que esses testes possam estar sendo realizados. Então, pelo fato de inexistir uma clareza de espírito no tocante a isso, faz com que esses testes sejam bastante questionáveis”, diz Fonseca.

Ele afirma considerar óbvio que a nova tecnologia possa ser muito positiva para obter um melhoramento na qualidade de vida de pessoas que por alguma condição tenham seus movimentos ou visão limitados, “todavia a falta de clareza de como isso poderia ser feito, da forma com que seria conduzido, até mesmo para evitar questionamentos relacionados a fraude, é o que traz a grande interrogação”.

“Então eu falo para você que se os protocolos utilizados para teste forem claros, definidos e, obviamente, estiverem amparados na ciência, à luz da ciência e da ética, óbvio que eles seriam mais positivos do que efetivamente negativos. O problema é a falta de mecanismos de controle para que o mal eventualmente aconteça. E, óbvio, evitar que o mal aconteça é sempre prerrogativa número um para você pensar que os benefícios sejam superados em relação aos malefícios.”

Qual o objetivo do chip da Neuralink?

Por sua vez, Felipe Haberfeld, médico neurologista formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), docente de neurologia do Instituto de Educação Médica (IDOMED), do grupo Yduqs, e head do IDOMED Hubs, diz que o estudo da Neuralink tem critérios muito bem estabelecidos.

“O estudo, que é o PRIME Study, ele, na verdade, desde setembro de 2023, já está sendo colocado aberto para recrutamento. Tanto que se você for no site da Neuralink, vai ter lá o announcement de 19 de setembro de 2023. Mas realmente você tem uma brochura onde eles falam sobre o estudo e tudo, que tem critérios muito bem estabelecidos de aceitação de pacientes para a pesquisa e de exclusão de pacientes à pesquisa”, explica.

Ele afirma que para que um paciente seja aceito na pesquisa, deve ter no mínimo 22 anos e ter tetraplegia, quadriplegia, alguma condição que o impeça de mexer os quatro membros (os dois braços e as duas pernas), como uma lesão na parte espinhal, principalmente cervical, ou esclerose amiotrófica. Além disso, a lesão que restringe os movimentos deve ter pelo menos um ano, sem melhora, e o paciente deve ter uma rede de apoio, ou seja, pessoas que possam acompanhá-lo durante o estudo.

“Pacientes que têm um device [dispositivo], marca-passo, estimulador cerebral profundo implantado ou histórico de epilepsia, que precisem fazer ressonância magnética por uma questão médica ou que estejam recebendo estimulação magnética transcraniana não podem fazer parte do estudo.”

Para Haberfeld, um dos principais benefícios dessa tecnologia é o aumento da liberdade do paciente, que passa a ter independência, seja total ou em algum grau. Porém ele adverte que, “como em qualquer estudo científico, há contras muito fortes”.

Quais os riscos associados à tecnologia?

“O primeiro deles é o risco da cirurgia, você vai implantar um chip no cérebro, então tem risco de infecção, hemorragia. Possíveis efeitos colaterais, o paciente pode ter crises convulsivas porque vai estar mexendo em córtex, e córtex, ele pode causar crises convulsivas quando você tem uma alteração da arquitetura ali; pode ter um mau funcionamento, esse dispositivo não obrigatoriamente trabalhar bem.”

Ademais, ele afirma que o custo da operação é relativamente complexo, então o chip não deve ser barato, logo, em caso de problemas, o acesso e a troca do dispositivo serão difícieis.

“Além disso, vai criar uma dependência tecnológica, vai criar um novo mercado, porque as pessoas que terão acesso a isso não vão querer deixar de ter, então cresce uma condição complicada em que a pessoa vai sempre precisar dessa possibilidade. E tem aspectos éticos e legais nisso. Por exemplo, o governo vai pagar para todas as pessoas que têm problema? Uma vez implantado o chip, essa pessoa obrigatoriamente vai manter relações com a empresa? A empresa vai usar esse chip para outras coisas? Os dados são muito bem protegidos?”

Washington Fonseca aponta que há ainda outros riscos, como a possibilidade de a nova tecnologia criar situações conflitantes com a religião ou cultura, o que poderia acarretar em segregação em alguns grupos sociais, e também há o questionamento jurídico sobre se o paciente “teria capacidade plena para o desenvolvimento das suas atividades, discernimento das suas atividades e exteriorização da sua vontade”.

“Então a gente tem que tomar muito cuidado, porque, com toda a franqueza, fazer com que pessoas se tornem semimáquinas, isso é muito perigoso.”

Ele também sublinha que a nova tecnologia deve vir acompanhada de limites morais e regramentos estabelecidos por conselhos regionais de medicina.

“A gente tem que ter projetos de lei que justamente façam o controle de até onde o indivíduo com chip humano pode celebrar determinados negócios jurídicos, externar a sua vontade”, diz Fonseca.

“E a gente tem um outro aspecto também. Imagina só uma pessoa que, eventualmente, tem um histórico de pedofilia, mas que tenha sofrido um AVC, ou então qualquer problema de ordem cognitiva, motora, começar a fazer busca por sites de pedofilia. Como é que isso seria controlado? Então a gente tem uma série de limitações que hoje não existem, que a gente deveria ter um aprimoramento do mundo digital, trazendo para a discussão dentro desse contexto. Caso contrário, a gente vai ter uma situação muito solta pela falta de regulamentação”, complementa.

Também há a questão da segurança referente aos dados, como aponta Haberfeld. Segundo ele, “todos os dados gerados na pesquisa têm de ser muito bem controlados, porque são muito sensíveis”.

“Eles [dados] têm que ser realmente protegidos contra o acesso não autorizado. Imagina se esses dados forem hackeados? Qualquer dispositivo que tem uma conexão com a Internet ou qualquer outra rede pode ser hackeado, então temos que pensar nisso”, afirma o especialista.

“Além disso, obrigatoriamente a gente tem que ter regulamentação. E aí é algo complicado, porque tem que ser regulada a segurança, tem que ser regulada a conformidade de padrão. Por exemplo, vamos supor que um concorrente queira fazer [um chip cerebral]. Como é que tem que ser feito? Quando tem que ser feito? De que forma? Qual o material utilizado? Quais são as obrigatoriedades para que a segurança do paciente seja colocada de maneira adequada? Então tem pontos aí que a gente tem que ver”, complementa.

Porém ele afirma considerar que os benefícios superam os riscos “quando se está falando de pacientes que têm uma restrição de mobilidade impactando muito na qualidade de vida”.

“Obviamente há riscos. Como a gente está lidando com ciência, há riscos calculados. Se os riscos são conhecidos, supera-se. No entanto, riscos desconhecidos não têm como ser superados pelos benefícios porque eu não sei [quais são os riscos]. Mas se for de acordo com o que está sendo exposto pela empresa, pela Neuralink, sim, faz sentido e o benefício é maior.”

Dispositivos implantados são uma tendência irreversível?

Questionados sobre se novas tecnologias com dispositivos implantados ou acoplados ao corpo humano, como o chip cerebral, serão uma tendência inevitável, ambos os especialistas afirmam que sim e apontam que já existem dispositivos anteriores ao chip cerebral atuando nesse sentido.

“Já existem mecanismos que são utilizados para aprimorar a saúde do indivíduo. A gente pode pegar até o próprio exemplo do Apple Watch e de outros relógios smart, que verificam pressão arterial, se o sujeito está em fase de pré-infarto, entre outras coisas, para melhorar a avaliação e, consequentemente, mitigar alguns riscos”, afirma Fonseca.

“Há inclusive aqueles sensores que se colocam no braço para fazer a medição do nível de glicose. A colocação de chip cerebral é uma coisa que merece discussão, debate. Porque a gente se defronta e esbarra em diversos limites éticos e falta de legislação para regulamentar a matéria. Agora, outros gadgets [usados] para ter um aprimoramento de quadros clínicos do ser humano, sem sombra de dúvida, é uma coisa muito positiva e é uma tendência inevitável mesmo”, acrescenta.

Haberfeld ressalta que “o uso de wearables [dispositivos vestíveis] está cada vez mais comum, e não só pensando no chip”.

“Por exemplo, [o uso de] smartwatches que verificam se o paciente teve fibrilação atrial, que é uma arritmia do coração, já está aplicado no nosso dia a dia de maneira cotidiana mesmo. Creio que a tendência dos wearables vá se manter e vá crescer para aumentar cada vez mais a eficiência de dados que precisam de controle do ser humano. Então, sim, creio que o futuro vai ser bastante recheado de dispositivos que vão otimizar cuidados médicos e otimizar a saúde do ser humano”, conclui.