“A Argentina é conhecida mundialmente não só pelo tango e o futebol, mas também pela qualidade de seus alimentos”, celebrava o Ministério da Economia do país em 2019. No entanto, hoje mais da metade da população argentina é pobre, e quase um quarto está ameaçado de passar fome, calcula o Observatório da Dívida Social, da Universidade Católica Argentina (ODSA-UCA), em seu relatório para o primeiro trimestre de 2024.
Os últimos dados oficiais disponíveis, do Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), relativos ao segundo semestre de 2023, indicavam um índice de pobreza de 41,7%. As estimativas do ODSA-UCA elevam a cifra para 55,5%: quase 25 milhões de residentes em áreas urbanas teriam sobrevivido abaixo da “linha da pobreza” – ou seja, da renda necessária a custear a “cesta básica total”, que inclui alimentação, moradia, educação, saúde e transporte.
Desses, quase 8 milhões, ou 17,5% da população argentina, estiveram até mesmo abaixo da “linha da indigência” – sem meios para sequer custear a “cesta básica alimentar”.
No terceiro trimestre de 2023, 11 milhões (quase um quarto da população), inclusive mais de 32% das crianças e adolescentes (2,7 milhões) haviam sofrido insegurança alimentar, tendo que “reduzir porções e saltar refeições”, detalha o sociólogo Juan I. Bonfiglio, do ODSA-UCA. Por sua vez, a “insegurança alimentar grave” (privação maior e mais frequente do mínimo de alimentos que evitaria a fome) atingiu 11% dos habitantes (5 milhões), incluídos 14% dos menores do país (mais de 1 milhão).
Argentina em crise alimentar desde 2018
O informe do Observatório foi divulgado enquanto o governo de Javier Milei, que assumiu a presidência em dezembro de 2023, iniciava a distribuição, inicialmente negada, a cantinas sociais de 5 mil toneladas de alimentos retidos em depósitos estatais e próximos da expiração da validade.
A medida veio na sequência de um escândalo que custou o posto a altos do Ministério de Capital Humano, deu início a um inquérito judicial e instigou o Executivo a prometer o desenvolvimento de um novo sistema de armazenamento alimentar para emergências.
Pelo menos desde 2018, o país atravessa “uma série de crises recorrentes e cada vez mais intensas”, com a duplicação, de 5% para 10%, da percentagem de cidadãos sofrendo fome ou insegurança alimentar severa. Após o agravamento, com a pandemia de covid-19, seguiu-se certa recuperação, mas aí veio “um recrudescimento muito importante no último ano, especificamente nos últimos meses”, relata Bonfiglio.
Essas crises estão associadas à perda de renda pelas famílias, devido a “um mercado de trabalho fortemente fragmentado, no qual não mais de 50% dos empregos cumpre as normas de seguridade social”, além de serem “precários, instáveis e de salários muito baixos”.
Para completar sua alimentação, os indivíduos e famílias de menor renda dependem da ajuda do Estado, de organizações da sociedade civil – inclusive Igrejas e suas instituições de caridade – ou político-partidárias, assim como de projetos comunitários espontâneos, ou mesmo da contribuição de familiares.
“Política da fome” cria emergência permanente
“O problema não é novo”, explica a socióloga María Victoria Sordini, autora do estudo A política da fome: uma emergência permanente na Argentina. Desde os anos 1980, como consequência de políticas neoliberais implementadas na década anterior, “amplos setores sociais vêm tendo que complementar a alimentação do lar com alguma prestação do Estado”, e todos os governos têm aplicado programas alimentares.
Estes incluem a distribuição de alimentos secos, financiamento e apoio técnico a cantinas comunitárias gratuitas – símbolo da organização comunitária no país – ou programas de formação sobre alimentação saudável, enumera Sordini. Bonfiglio reforça: para os mais vulneráveis, as políticas públicas fazem a diferença, portanto se hoje “não chega provisão de alimentos às cantinas, a situação piora sensivelmente”.
Uma já histórica “estratégia estrela” do Estado argentino contra a fome são as transferências monetárias, sobretudo através de programas sociais, visando incrementar a capacidade individual e familiar de abastecer-se com alimentos frescos. Entre janeiro e maio, o atual governo aumentou em mais de 137% a verba da assistência social para compra de alimentos.
Desde junho, as famílias mais pobres, com grávidas, filhos menores de 14 anos ou incapacitados de qualquer idade, recebem entre 52.250 e 108.062 pesos argentinos (de R$ 306 a R$ 638), segundo a quantidade de filhos, através de uma Carta Alimentar. Até dezembro de 2023, a cifra era de 22 mil a 45.500 pesos.
“Que sociedade mantém políticas alimentares tão falhas?”
Apesar de tudo, o efeito compensatório dessa medida se choca com um contexto fortemente recessivo, a eliminação de postos de trabalho e uma inflação galopante, ressalva. Segundo o Indec, em abril de 2024 a alta interanual dos preços de bens e serviços na Argentina chegou quase a 290%.
Em contraste, segundo a plataforma de verificação Chequeado, até o mês anterior o poder aquisitivo da Carta Alimentar – que contava 3,7 milhões de titulares em agosto de 2023 – só aumentara 32%. Além disso, lamentam os especialistas, essa forma de assistência só alcança os lares vulneráveis com crianças. Outros – por exemplo, com idosos e outras vulnerabilidades – “que também estão passando fome”, não são contemplados em tais políticas públicas.
Que sociedade propõe esse tipo de políticas públicas, “necessárias” mas “assistenciais, transitórias, fragmentárias”, que em quatro décadas não resolveram a emergência alimentar argentina, incluindo a “fome oculta” na má nutrição?
Para Sordini, enquanto pesquisadora do Instituto de Humanidades e Ciências Sociais (INHUS-Conicet), essa é uma pergunta central para a revisão das política de combate à fome na Argentina.
Bonfiglio faz algumas sugestões: em primeiro lugar, “melhorar as condições do mercado de trabalho”, com políticas sustentáveis no longo prazo, gerando “melhores oportunidades laborais”. De resto, cabe ver, nos próximos meses, “quanto êxito vão ter, nesse sentido, as atuais políticas de flexibilização e liberalização, de corte dos gastos públicos”, mais radicais que as antecedentes.