Por muito pouco, o ser humano não teria existido. Mais precisamente, por 1.280 indivíduos. Um estudo genético publicado, nesta quinta-feira (31/08), na revista Science mostra que, entre 930 mil e 813 mil anos atrás, uma crise evolutiva quase extinguiu os ancestrais da humanidade, eliminando 98,7% da população da época. Graças a um pequeno número de espécimes, porém, nos 117 mil anos seguintes houve um crescimento demográfico e, com ele, a diversidade necessária para uma verdadeira expansão.
Os cientistas sempre quebraram a cabeça para entender uma lacuna no registro de hominídeos na África e na Eurásia. “O que sabemos é que os fósseis, entre 900 mil e 600 mil anos atrás, são muito escassos, se não inexistentes, ao mesmo tempo em que, tanto antes quanto depois disso, há um número bem maior de evidências fósseis”, destaca Giorgio Manzi, antropólogo da Universidade Sapienza, de Roma, e um dos autores do estudo. “O mesmo pode ser dito sobre a Eurásia. Por exemplo, na Europa, temos espécies conhecidas como Homo antecessor cerca de 800 mil anos atrás e, então, absolutamente nada até 200 mil anos.”
Com uma nova tecnologia, chamada FitCoal (sigla para processo coalescente rápido em tempo infinitesimal), pesquisadores da Itália, dos Estados Unidos e da China usaram sequências genômicas modernas de 3.154 indivíduos e concluíram que os primeiros antepassados humanos enfrentaram uma queda populacional drástica por mais de 100 mil anos. De acordo com Manzi, mudanças climáticas são apontadas como principais causas do gargalo. Eventos de glaciação desencadearam alterações na temperatura, secas severas e perda de espécies que poderiam ser fonte de alimento dos ancestrais.
O especialista ressalta que, “embora essa pesquisa tenha iluminado alguns aspectos dos ancestrais do início ao médio do Pleistoceno, há muito mais perguntas a serem respondidas desde a descoberta dessa informação”. Contudo, considera os resultados do estudo um avanço significativo. “A lacuna nos registros fósseis africanos e euroasiáticos pode ser explicada cronologicamente por esse gargalo no início da Idade da Pedra. Coincide com esse período proposto de perda significativa de evidências fósseis.”
“O fato de o FitCoal poder detectar o antigo gargalo, mesmo com algumas sequências, representa um avanço”, afirmou, em nota, o autor sênior Yun-Xin Fu, geneticista populacional teórico do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas, em Houston. “A descoberta abre um novo campo na evolução humana porque evoca muitas questões, tais como os locais onde esses indivíduos sobreviventes habitavam, como superaram as mudanças climáticas catastróficas e se a seleção natural durante o gargalo acelerou a evolução do cérebro humano”, complementou, também em comunicado, Yi-Hsuan Pan, especialista em genômica evolutiva e funcional da East China Normal University (ECNU).
Genética
O estudo estima que 65,85% da diversidade genética atual pode ter sido perdida devido ao gargalo no início do Pleistoceno Médio. O tempo prolongado com quantidades ínfimas de indivíduos reprodutores ameaçou a humanidade como se conhece hoje, sustentam os autores. “Porém, a queda populacional também pode ter contribuído para um evento de especiação, onde dois cromossomos ancestrais convergiram para formar o que é atualmente conhecido como cromossomo 2 nos humanos modernos”, conta Manzi. “Assim, inferimos que o último ancestral comum de denisovanos, neandertais e humanos modernos foi descoberto.”
De acordo com os autores, agora, os cientistas precisam continuar escavando para entender como uma população tão pequena “persistiu em condições supostamente complicadas e perigosas”. O controle do fogo e mudanças climáticas que tornaram o planeta mais hospitaleiro para a vida humana podem ter contribuído para um rápido aumento populacional depois desse período crítico. “Essas descobertas são apenas o começo. Os objetivos futuros com esse conhecimento visam pintar um quadro mais completo da evolução humana durante esse período de transição do início para o Pleistoceno Médio, que, por sua vez, continuará a desvendar o mistério que é a ancestralidade e a evolução humana primitiva”, ressaltou Li Haipeng, teórico geneticista populacional e biólogo computacional do Instituto de Nutrição e Saúde de Xangai, Academia Chinesa de Ciências.
Chris Stringer, pesquisador do Museu de História Natural de Londres que não participou do estudo, afirma, contudo, que o gargalo populacional do Pleistoceno não é uma certeza. Segundo o especialista, é possível que o fenômeno tenha ocorrido localmente, provavelmente na África. Ele destaca que erros antigos de datação e contaminação de sítios paleontológicos podem contribuir para que fósseis tenham sido datados erroneamente. “Contudo, esse é um estudo provocativo, que coloca em foco a vulnerabilidade dos primeiros ancestrais humanos. Se métodos como o FitCoal puderem ser aplicados a mais genomas de Homo sapiens, neandertais e denisovanos, acredito que poderão esclarecer outros antigos gargalos e quais regiões foram mais ou menos afetadas.”