Em parte, essa situação se deve ao fato de que o país tem adotado dois caminhos diferentes para abordar o assunto: o primeiro trata-se da diplomacia institucional do Brasil na ONU e o segundo diz respeito à diplomacia presidencial empreendida durante os mandatos de Jair Bolsonaro e agora de Lula.
Um desses exemplos ocorreu justamente na semana passada durante a Cúpula para a Democracia realizada pelos Estados Unidos. Após seu encerramento, o governo brasileiro optou por não endossar a declaração final da Cúpula, por entender que o teor do documento era direcionado de forma clara contra a Rússia, ao exigir que Moscou retirasse imediatamente suas tropas da Ucrânia.
Para o Brasil, discussões a respeito de possíveis soluções para o conflito devem continuar acontecendo na ONU e no âmbito do Conselho de Segurança. Ademais, Lula, em carta enviada aos organizadores do evento, demonstrou apreensão quanto ao atual estado de confrontação entre o Ocidente e países como Rússia e China, além de enfatizar que a defesa da democracia não deve ser utilizada para se “levantar muros nem suscitar divisões”.
Em verdade, a diplomacia presidencial brasileira tem se mostrado mais cautelosa em seus posicionamentos com relação ao conflito do que a diplomacia institucional empreendida pelo país na ONU. Vale lembrar que, quando a conflagração militar entre Rússia e Ucrânia teve início em fevereiro do ano passado, Jair Bolsonaro eximiu-se de tecer críticas a Putin e o Brasil não seguiu a mesma linha dos países ocidentais no sentido de impor sanções contra Moscou.
Quando visitou a Rússia em fevereiro passado, Bolsonaro já havia manifestado “solidariedade” para com o país, parecendo indicar que o Brasil era sensível às demandas russas de segurança em relação à expansão da OTAN para o leste.
Ao retornar para o Brasil, por sua vez, Bolsonaro continuou enfatizando a importância de ampliar a colaboração com a Rússia em áreas como: fertilizantes, exploração de petróleo e gás, agricultura e tecnologia nuclear, entre outras.
Por outro lado, já nos primeiros meses do conflito o comportamento brasileiro na ONU alinhou-se ao do Ocidente, ao ter endossado as moções condenatórias à Rússia em votações na Assembleia Geral. Do BRICS, o Brasil foi o único país a apoiar a moção, uma vez que Índia, China e África do Sul se abstiveram naquelas ocasiões.
A posição do Brasil, todavia, não chegou a representar uma guinada antirrussa na política externa brasileira desde então, motivada sobretudo pela condução de sua diplomacia presidencial mais conciliatória.
Nesse contexto, o atual presidente brasileiro Lula tem sido um dos poucos líderes mundiais a fazer um chamamento à paz em relação ao conflito na Ucrânia, movimento esse que pode vir a influenciar outros países neutros (tais como Turquia, Índia, Indonésia, entre outros) a se juntarem à iniciativa.
Certamente, quanto mais Estados influentes estiverem imbuídos no intuito de provocar as partes envolvidas (Rússia, Ucrânia, União Europeia e Estados Unidos) a buscar um acordo de paz, mais perto estaremos de um possível fim das hostilidades.
Cabe notar que Brasil e Rússia são parceiros no BRICS, e ambos os países foram os principais responsáveis pelo lançamento do grupo em meados dos anos 2000. Ora, desde 2006 Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores do Brasil entre os anos de 2003 e 2010) e Sergei Lavrov (ministro das Relações Exteriores da Rússia desde 2004) já conversavam sobre a possibilidade de criação do grupo em encontros bilaterais, realizados às margens de reuniões da Assembleia Geral da ONU.
Em vista disso é que podemos avaliar o incrível grau de desfaçatez das potências ocidentais (encabeçadas por Estados Unidos e Alemanha) em solicitar ao Brasil o envio de armamentos e munições à Ucrânia. Na prática, era como se Washington e Berlim intentassem colocar o Brasil em confronto direto com a própria Rússia, justamente um dos membros do BRICS.
Contudo, Lula demonstrou sensatez ao recusar a proposta, mesmo após pressão por parte de alemães e americanos, reforçando a posição do Brasil em torno da “resolução pacífica dos conflitos”. O Ocidente, por seu turno, continuou optando por seguir o caminho da “resolução armada” dos conflitos.
Por certo, o Brasil (tanto no período final de Bolsonaro quanto no período inicial de Lula) demonstra claramente seu interesse não pela continuação, mas sim pelo fim das hostilidades entre Rússia e Ucrânia. É bem provável, portanto, que essa posição brasileira seja mais detalhadamente discutida não somente na visita de Lula à China (marcada para abril) como também num futuro encontro do presidente brasileiro com Vladimir Putin.
No mais, é preciso observar que como parte do Sul Global o Brasil também possui queixas historicamente justificadas em sua relação com o Ocidente e principalmente com os Estados Unidos. A própria política intervencionista dos americanos, sobretudo durante o período da Guerra Fria, fez da América Latina um território fértil para o surgimento de ressentimentos políticos profundos, fenômeno esse também compartilhado por outras regiões do mundo.
O Sul Global, portanto, entende bem o papel desestabilizador do Ocidente com relação ao conflito na Ucrânia e não está disposto a seguir às cegas todos os seus ditames.
Seja como for, para o Brasil continua válida a máxima de se opor a quaisquer tipos de “abordagens unilaterais” para a solução da atual crise militar na Europa, além da inadmissibilidade da aplicação de sanções sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU (no qual a Rússia possui cadeira permanente e poder de veto).
Para o Ocidente, de um modo geral, era importante demonstrar que a Rússia estaria cada vez mais isolada da comunidade internacional. Entretanto, países como China, Índia, Brasil e demais representantes do Sul Global (tanto na América Latina como na Ásia e África) provaram que o isolamento de Moscou é tão somente parcial e não total como se esperava.
Por fim, apesar de ter feito movimentações simbólicas na ONU contra a Rússia, o Brasil na prática não só se eximiu de aplicar sanções a Moscou ou de enviar armamentos a Kiev, como também seguiu um caminho mais independente em sua diplomacia presidencial.
Ora, as relações com a Rússia continuarão sendo importantes para Brasília tanto no âmbito bilateral, quanto sobretudo no BRICS, e é bem possível que o país sul-americano possa cumprir papel não negligenciável (ao lado de outras potências regionais relevantes) na criação das condições para um acordo de paz entre russos e ucranianos.