Durante o encontro, as posições do mandatário brasileiro causaram certo ruído em diversos círculos políticos europeus, assim como na mídia, ao demonstrarem a diferença de interpretações entre o Brasil e a Europa sobre alguns dos principais problemas da agenda internacional.
A cúpula, que foi dedicada a discussões sobre a necessidade de reformas nas instituições financeiras globais e sobre o combate à crise climática nos países em desenvolvimento, teve no pronunciamento de Lula um de seus pontos altos.
No início de seu discurso, Lula fez um chamamento à comunidade internacional para participar da reunião da COP-25 no Pará, ao mesmo tempo criticando de forma velada aqueles que falam da Amazônia sem realmente conhecê-la.
Desde tempos, críticas europeias (e sobretudo da própria França) sobre a gestão brasileira da Amazônia, especialmente quando incêndios de grande porte são noticiados na região, suscitam no governo brasileiro certa desconfiança.
Interpreta-se que, por detrás dessas críticas, escondem-se intensões insidiosas de questionar a soberania do Brasil sobre a sua porção do território amazônico e, com isto, justificar uma intervenção externa em assuntos domésticos do país.
Nesse contexto, Lula fez menção de reunir em agosto todos os chefes de Estado da América do Sul e representantes dos países que compõem a região amazônica, no intuito de formularem uma proposta comum para futuras reuniões da COP.
Mais uma vez restou demonstrada a intenção do governo brasileiro de priorizar o multilateralismo em sua política externa, advinda da percepção de que as nações sul-americanas devem atuar em conjunto no cenário internacional a fim de proteger seus interesses, envolvendo inclusive a questão ambiental.
Trata-se de movimento importante. Afinal, no período de expansão do colonialismo europeu na África, Ásia e nas Américas a partir do século XV, uma de suas principais motivações era justamente o desejo pela obtenção de matérias-primas e recursos naturais presentes nessas regiões.
Logo, ao mesmo tempo em que proteger estes biomas torna-se algo fundamental num mundo em que as preocupações climáticas ganharam holofote, resguardar-se quanto a tentativas de se relativizar a soberania dos Estados por parte dos países europeus é tarefa também da mais alta importância.
Outro tema que esteve presente no discurso de Lula foi a questão da desigualdade mundial entre os Estados. A análise de Lula acerca das dificuldades de se enfrentar a concentração da riqueza nas mãos de um pequeno punhado de pessoas no âmbito doméstico dos países acabou ressoando também na posição internacional do Brasil de diminuir o vão que separa os países desenvolvidos dos países em desenvolvimento.
Nesse quesito, Dilma Rousseff, a quem Lula adereçou suas palavras iniciais antes de começar seu discurso, há muito tempo já chamava a atenção para a necessidade de se eliminar “a disparidade entre a crescente importância dos países em desenvolvimento na economia global e sua insuficiente representação e participação nos processos decisórios das instituições financeiras internacionais”.
Essa é sem dúvidas uma questão muito cara para os países latino-americanos como o Brasil que tiveram experiências desagradáveis no passado com as instituições de governança global dominadas pelos países europeus, como o Fundo Monetário Internacional.
Sobretudo nos anos 1980, na medida em que suas receitas de exportação diminuíam, grande parte dos Estados na América do Sul viram suas dívidas aumentar para com o FMI, deixando-os numa verdadeira condição de falência financeira.
Tratou-se de um período em que o Brasil precisou utilizar grande parte de seus ganhos com o comércio internacional apenas para pagar os juros de sua dívida, ao invés de usá-los para o seu desenvolvimento econômico e social.
A armadilha da dívida, como essa situação passou a ser conhecida, representou um desastre humanitário para cerca de 700 milhões das pessoas dos países em desenvolvimento em todo o mundo.
Na África, por exemplo, essa condição gerou verdadeira queda na expectativa de vida, diminuição da renda nacional, deterioração nos níveis de investimento e aumento nas taxas de mortalidade no continente.
Foi em vista disso que Lula criticou as instituições de Bretton Woods, por não atenderem mais “às aspirações e nem aos interesses da sociedade”, mencionado que o Banco Mundial e o FMI deixam “muito a desejar naquilo que as pessoas esperam” deles.
Parte daí a posição do Brasil pela necessidade da mudança das instituições de governança global sob controle dos países europeus, a fim de evitar uma situação em que, nas palavras do mandatário brasileiro, os países ricos continuem ricos e os países pobres continuem pobres.
Outra das questões trazidas por Lula em seu discurso foi a visão brasileira sobre a obsolescência da atual composição dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que conta com duas potências europeias em seu quadro: Reino Unido e a própria França.
Há não muito tempo atrás, o ministro das Relações Exteriores do Brasil Mauro Vieira também tocou nesse ponto, reafirmando as intenções do Brasil de se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança, aspiração política de longa data do país.
No âmbito do BRICS, vale lembrar, o Brasil já conta com os apoios de Rússia e China no que se refere a desempenhar um papel mais ativo na ONU, de forma que a organização se torne mais efetiva e legítima internacionalmente.
Posteriormente, Lula criticou o mundo desenvolvido pelo seu desinteresse em financiar infraestruturas que atendam às necessidades de continentes como a África. Novamente aqui presencia-se a importância do papel do Brasil no âmbito do BRICS, ajudando a fundar o Novo Banco de Desenvolvimento, instituição destinada justamente ao financiamento de projetos de infraestrutura sustentável em países emergentes.
Sem sombra de dúvidas, o banco do BRICS representou também a insatisfação do grupo para com a lentidão das reformas nos organismos de Bretton Woods, nos quais os países europeus estão sobrerepresentados.
Por fim, o presidente brasileiro aludiu ao fato de que os principais fóruns internacionais não podem se transformar apenas numa reunião de um pequeno “grupo de luxo” (em velada alusão talvez ao G7).
Para Lula, estes fóruns devem servir para “atender a pluralidade dos problemas que o mundo tem”, e não só os problemas que concernem à América do Norte ou à Europa.
Pensamento similar já fora expressado pelo ministro das Relações Exteriores indiano Subrahmanyam Jaishankar quando disse que os europeus precisam “superar a mentalidade de achar que os problemas da Europa são os problemas do mundo, mas que os problemas do mundo não são os problemas da Europa”.
Tudo isso serve para demonstrar que, apesar dos muitos convites que Lula vem recebendo recentemente para participar de fóruns internacionais capitaneados pelos países europeus, diferenças políticas e de interpretação de mundo continuarão existindo entre o Brasil e a Europa.
Bem pudera, afinal não é de hoje que as relações entre o Norte e o Sul Global são marcadas por encontros e desencontros. Pelo visto as relações exteriores da era Lula continuarão seguindo essa mesma tradição.
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.