O escândalo das joias milionárias da Arábia Saudita não vinculou Jair Bolsonaro apenas aos crimes de peculato, descaminho e lavagem de dinheiro, pelos quais pode responder após as investigações que foram iniciadas na última semana.
Serviu para deixar patente a intervenção que praticou durante quatro anos na Receita Federal. O ex-presidente enxergava a instituição de Estado como um órgão a serviço de benefícios particulares, com a atribuição de defender os interesses dele, de parentes e amigos, além de perseguir adversários políticos. Ele exigiu trocas em cargos estratégicos, abafou investigações contra aliados e familiares, como seu filho Flávio Bolsonaro, desmontou equipes de fiscalização de um porto fluminense controlado por milícias e contou com devassas em dados sigilosos para perseguir inimigos, a exemplo de Paulo Marinho e de Gustavo Bebianno.
Esse método truculento de intervenção ficou escancarado na tentativa de burlar o Fisco ao incorporar as joias avaliados em R$ 16,5 milhões doadas pela monarquia da Arábia Saudita, supostamente a serem destinadas à ex-primeira-dama Michele. O estojo apreendido continha um colar, um relógio, um anel e um par de brincos da marca de alto luxo suíça Chopard. As peças, recebidas das mãos dos sauditas pelo então ministro das Minas e Energia Bento Albuquerque durante viagem oficial ao país em outubro de 2021, deveriam ser declaradas na sua entrada no aeroporto de Guarulhos seguindo um roteiro burocrático protocolar simples. Deveriam estar acompanhadas de um pedido de incorporação ao Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República, local onde ficam armazenados itens de valor recebidos por autoridades federais brasileiras. Seriam vistoriadas pelos fiscais e, em seguida, liberadas. Não haveria necessidade de pagamento de impostos, pois seriam consideradas isentas e guardadas no acervo da União junto com presentes recebidos por outros presidentes e primeiras-damas.
A comitiva de Bolsonaro, no entanto, tentou burlar as regras. Ao invés de apresentar a documentação necessária ou informar o que carregava, o então assessor do ministro Bento Albuquerque, Marcos André dos Santos Soeiro, tentou passar pelo setor de “nada a declarar” da alfândega com os milhões em joias dentro de uma mochila. Acabou parado pela fiscalização, e os bens carregados foram apreendidos. No mesmo dia, os fiscais já sofreram a primeira coação para liberar as joias. O ministro Bento Albuquerque entrou na área de fiscalização e pressionou os funcionários da Receita a liberar as peças com o argumento de que elas seriam destinadas à primeira-dama Michele. O fiscal responsável, no entanto, rejeitou a “carteirada” que o almirante tentou aplicar.
Desde então ocorreram pelos menos oito tentativas de reaver as joias. Diversos órgãos, como Itamaraty, o Gabinete de Documentação Histórica da Presidência da República e o Ministério de Minas e Energia entraram em contato com a fiscalização para a liberação. Segundo pessoas próximas ao caso ouvidas por ISTOÉ, todos os requerimentos eram genéricos e não explicitavam a incorporação das joias, em definitivo, para o Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente. Portanto, foram negados.
O personagem central dessa tentativa de intervenção é o chefe da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes. Nos últimos dias de mandato de Bolsonaro, em uma espécie de desespero, foi montada uma ação para a liberação das joias. Um dia antes de Bolsonaro viajar para os EUA, um militar ligado ao gabinete da Presidência foi deslocado para Guarulhos, em um avião da FAB, para conversar pessoalmente com o fiscal responsável. Dizia falar em nome da Presidência. Foi enviado pelo tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, o ajudante de ordens de Bolsonaro. Em diálogos captados pelo sistema de vídeo do aeroporto, o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva dizia que “isso aqui faz parte da passagem, não pode ter nada do antigo para o próximo. Tem que tirar tudo, tem que levar”. Também afirmava que o assunto “é de urgência” e tentou passar o telefone para que o funcionário da Receita falasse com Mauro Cid. Ainda tentou mostrar no seu celular uma ordem emitida pelo “sr. Julio Cesar”. O fiscal não cedeu, e o ardil fracassou.
Áudios e emails
O próprio Vieira Gomes agiu pessoalmente várias vezes visando liberar as joias para o chefe. Pressionou servidores de vários departamentos por meio de mensagens de Whatsapp, gravou áudios, fez telefonemas e encaminhou e-mails, revelou “O Estado de S.Paulo”. Conversou com Bolsonaro por telefone para tratar do assunto em dezembro. Tudo em vão. Questionado nos EUA sobre a tramoia, Bolsonaro saiu pela tangente: “Estou sendo crucificado por um presente que eu não recebi. Alguns jornais disseram que tentei trazer joias ilegais para o Brasil, não existe isso”, declarou. Mas Bolsonaro não saiu com as mãos abanando. Se as joias milionárias endereçadas para Michele acabaram apreendidos, um outro conjunto de adereços da joalheria Chopard, avaliados em R$ 400 mil, passou ilegalmente pela fiscalização em Guarulhos com a comitiva do Ministério de Minas e Energia. Nesse estojo estava um relógio com pulseira de couro, um par de abotoaduras, um anel, uma caneta e um rosário islâmico. E não foram parar no acervo público, como deveriam. Os artigos se encontram em poder do próprio Bolsonaro, segundo protocolo de entrega no Palácio do Alvorada, com a observação de que o próprio ex-presidente o checou. “A simples existência desse segundo estojo demonstra a má-fé na tentativa de entrarem com o primeiro”, analisa um fiscal próximo à apreensão. “Desde o começo, estava claro que eles não tinham objetivo de integrar aquelas peças ao acervo da União”.
Ao confessar que incorporou o segundo estojo de joias, o ex-presidente confessou o crime de peculato, segundo o jurista Wálter Maierovitch. O código penal prevê até 12 anos de reclusão para quem se apropria de bem público na condição de funcionário público. Bolsonaro escalou para representá-lo no caso o advogado Frederick Wassef, notório por esconder o ex-PM Fabrício Queiroz quando este estava foragido no escândalo das rachadinhas. Wassef diz que tudo não passou de “mal entendido” e que “o presidente Bolsonaro agindo dentro da lei, declarou oficialmente os bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens, não existindo qualquer irregularidade em suas condutas”. Mas a lei citada por ele, de 1991 e regulamentada em 2002, e decisão do TCU de 2016 contradizem essa afirmação. Ministros do TCU avaliam pedir a devolução das joias em poder de Bolsonaro.
Cargo em Paris
A barafunda é ilustrativa dos métodos de Bolsonaro na Receita Federal. No apagar das luzes de seu mandato e já nos EUA, ele aproveitou para retribuir a ajuda de seus aliados dentro do órgão. Em atos formalizados pelo vice Hamilton Mourão, criou cargos especiais e tentou protegê-los das prováveis quedas com a mudança de governo. Logo após se empenhar em tentar liberar as joias de Michele, o próprio Vieira Gomes recebeu uma nomeação como adido da corporação na França, um posto até então inexistente. Já José de Assis Ferraz Neto, subsecretário-geral da Receita, foi escolhido para a recém-criada função de adido nos Emirados Árabes Unidos. Com a chegada de Lula, ambos não tomaram posse. Vivenciariam, sim, outra experiência: a de terem os nomes relacionados a um escândalo. Foram acusados pelo corregedor da Receita João José Tafner de tentarem convencê-lo a arquivar uma denúncia grave contra um servidor bolsonarista. Eles teriam pedido para Tafner colocar panos quentes nas sanções contra Ricardo Pereira Feitosa, ou seja, que minimizasse graves violações. Afinal, Ricardo Feitosa pôs a estrutura da Receita a serviço da inteligência bolsonarista. Em julho de 2019, acessou e armazenou informações de, ao menos, três desafetos declarados do clã Bolsonaro. Em uma clara tentativa de encontrar dados comprometedores, violou o sigilo de Gustavo Bebbiano, primeiro ministro a romper com Bolsonaro, do empresário Paulo Marinho, que também havia passado de aliado a desafeto do presidente, e do procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Eduardo Gussem, que comandava a denúncia das rachadinhas contra Flávio Bolsonaro.
As acusações de Tafner contra Vieira Gomes e José de Assis Ferraz Neto chamam atenção pela proximidade de todos com o bolsonarismo. A chegada de Tafner ao cargo de corregedor, no início de 2022, teria sido, inclusive, patrocinada pelo clã Bolsonaro, em especial por Flávio Bolsonaro. Na época, a família desejava ter no posto alguém ideologicamente alinhado em um claro recado aos demais integrantes da corporação sobre os riscos de dali para frente contrariarem interesses de parentes, amigos ou aliados de Bolsonaro. E Tafner apresentava os predicados para isso, participou de eventos da campanha de 2018 de Jair Bolsonaro e exibia fotos ao lado de membros da família, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Na última semana, em meio a embates com o atual comando da Receita, Tafner pediu exoneração da Corregedoria embora tivesse mandato até 2025.
Resistir às determinações de Bolsonaro, fossem republicanas ou não, resultavam na perda de cargos de comando. O primeiro a sentir isso foi o então subsecretário-geral da Receita Federal, José Paulo Ramos Fachada Martins da Silva. Com a função de gerenciar o dia a dia do órgão, ele foi demitido em agosto de 2019. Seu “erro” teria sido o de supostamente não controlar a sanha de apuração dos servidores, que possuem autonomia e estabilidade justamente para tanto, e de dificultar trocas de postos internos baseadas em orientações políticas. Na época, o governo demonstrava uma estranha obsessão: a de substituir o responsável pela alfândega do Porto de Itaguaí, no Rio de Janeiro. O local é notório por ser rota de tráfico de armas e drogas e ficar em uma área controlada por milícias.
Bolsonaro nem fazia questão de esconder publicamente sua revolta em ter parentes ou aliados fiscalizados e de enfrentar resistência em mexer na hierarquia da Receita. Poucos dias após o governo demitir José Paulo Ramos Fachada, o ex-presidente deu declarações exaltadas de que não “seria um banana” e mexeria sim na estrutura tanto da Receita como da Polícia Federal. “Houve uma explosão junto à mídia no Brasil, uma explosão. Está interferindo (na Receita e na Polícia Federal)? Ora, eu fui [eleito] presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem”, afirmou. “A Receita Federal tem problemas. Faz um bom trabalho, mas tem problemas. E devemos resolver esses problemas trocando gente”, complementou. Uma dessas “imperfeições” da Receita estaria em cobrar uma dívida de cerca de R$ 1,6 mil de um irmão de Bolsonaro.
Em setembro de 2019, por conflitos com a equipe econômica, caiu o primeiro chefe da Receita da gestão Bolsonaro. No lugar de Marcos Cintra, assumiu José Barroso Tostes Neto. Ele ficaria pouco mais de um ano no cargo e perderia prestígio ao protelar a nomeação de um nome escolhido por Flávio Bolsonaro para a corregedoria. Nesse tempo, sofreu pressões para agradar um segmento caro a Jair Bolsonaro. De novo mostrando priorizar seus interesses políticos e privados, o então presidente mais de uma vez cobrou que Tostes Neto solucionasse dívidas tributárias de igrejas evangélicas com o Fisco.
Foi durante a gestão de Tostes que a Receita enfrentou um dos episódios mais contraditórios. Atendendo a pedido dos advogados de Flávio Bolsonaro, cinco servidores foram mobilizados para procurar indícios e provas que colocassem em xeque as investigações das rachadinhas. Por quatro meses, segundo o jornal “Folha de S.Paulo”, eles apuraram as suspeitas levantadas pelo próprio senador de que dados seus, da esposa e de suas firmas teriam sidos violados por servidores e enviados para o COAF, dando início às investigações do esquema de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ao fim, os envolvidos concluíram não haver nenhuma irregularidade praticada na Receita.
Agora, num autoexilio conveniente para deixar de prestar contas de suas ações, Bolsonaro não consegue mais intervir no órgão. Servidores de carreira cumpriram sua função e mostraram a resiliência da instituição contra os desmandos. A Receita pretende apurar o descaminho praticado na entrada irregular de joias e soma esforços com a PF e o Ministério Público Federal, que já abriram procedimentos para averiguar as inúmeras irregularidades envolvendo os presentes enviados a Michele e Bolsonaro. Enquanto as autoridades investigam, a história das joias encurrala ainda mais o clã Bolsonaro. O ex-presidente foi aconselhado por aliados a ampliar sua estadia na Flórida e a ex-primeira-dama assistiu ao PL abortar uma série de viagens suas pelo Brasil. Pudera. As reluzentes joias milionárias jogaram luz nas práticas abjetas da gestão Bolsonaro.
Caso de tevê
Estrela da série “Aeroporto – área restrita”, do canal Discovery, o auditor-fiscal Mario de Marco Rodrigues de Souza atua como delegado-adjunto e substituto da Receita Federal no terminal de Guarulhos, maior aeroporto da América Latina. De Marco, como é conhecido, é um dos responsáveis pela equipe de agentes da alfândega que impediu a liberação das joias milionárias que seriam destinadas à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. A série de televisão mostra a rotina do trabalho dos servidores da Receita no controle aduaneiro. O setor de inteligência, comandado com o auxílio de De Marco, é responsável por monitorar os passageiros que estão embarcando ou desembarcando — e abordá-los caso haja suspeita de práticas criminosas, como o transporte de drogas ilícitas ou de produtos contrabandeados.