O calor e a seca históricos, impulsionados pela crise climática, têm um papel fundamental na dimensão dos incêndios que tomam conta do Brasil. Mas especialistas apontam que o cenário atual poderia ser amenizado, com mais ações preventivas e de fiscalização. Destacam ainda que a escassez de recursos, aliada à falta de priorização do problema pelo governo federal, são fatores que ajudam a explicar o recorde de áreas queimadas e a propagação da fumaça pelo país.
Para a coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, o combate ao fogo deveria ter sido elevado a um “verdadeiro problema nacional”. “Quem dá, em tese, as autorizações para o uso do fogo em práticas agrícolas são os estados. Quem deveria estar multando, se isso não ocorre, são os estados. Quem deveria controlar os incêndios na maior parte do território, são os estados. E eles fazem isso menos do que deveriam. Mas o governo federal pode ficar omisso? Não”, avaliou.
“O governo federal tem uma atribuição na política ambiental de articulação e coordenação. E acredito que a atuação está aquém do necessário”, completou. Embora reconheça avanços na política ambiental da gestão Luiz Inácio Lula da Silva, Araújo disse que o poder executivo deveria ter colocado o problema como prioridade de diversos ministérios, além de coordenar ações junto aos estados.
O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) não respondeu aos pedidos de informação e questionamentos da reportagem. Em um canal de entrevistas do governo, a ministra Marina Silva chegou a admitir, nesta terça-feira (17/09) pela manhã, que são necessários mais esforços.
“É preciso que haja uma ação coordenada o mais rápido possível e nós estamos trabalhando nessa direção. As medidas têm sido suficientes? Ainda não têm sido suficientes, mas elas estão sendo ajustadas o tempo todo, mobilizando equipes o tempo todo, aumentando a quantidade de recursos o tempo todo. Mas o certo é que não haja fogo, e que os que forem pegos ateando fogo, que sejam punidos”, afirmou.
Logo depois, à tarde, foi realizada uma reunião entre o presidente, os ministros e os chefes de Poderes no Planalto. Lula afirmou que houve um “agravamento da crise nos últimos dias” e que o Brasil “não estava 100% preparado para cuidar dos eventos climáticos extremos”. O governo também anunciou R$ 514 milhões para combater os incêndios.
Falta de prevenção
O MapBiomas divulgou, na semana passada, os dados mais recentes do Monitor do Fogo. Neste ano, a área queimada atingiu 11,39 milhões de hectares, um aumento de 116% em relação a 2023. Só o mês de agosto representou 49% da área queimada no Brasil. E a expectativa é de que em setembro a situação seja ainda pior.
Durante o lançamento da pesquisa, a coordenadora do MapBiomas Fogo e diretora de Ciências do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Ane Alencar, afirmou que o governo está usando todos os seus esforços para combater o fogo. “Mas mesmo que queira combater todos os incêndios, não vai dar conta. Tem que, realmente, cortar o mal pela raiz, que é o uso do fogo.”
Na visão da pesquisadora, seria preciso uma ampla conscientização sobre o problema. “A gente já sofreu com o fogo de Roraima no início do ano. Seria o momento para começar, muito fortemente, nos municípios que mais queimam, uma campanha de redução do uso do fogo. Eu desconheço que isso tenha acontecido na Amazônia de forma ampla. No Brasil também não vi.”
Para o consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Mauricio Guetta, o governo tem anunciado recentemente medidas positivas e que devem incrementar a atuação do poder público no combate aos incêndios. Na semana passada, por exemplo, foi lançada a Autoridade Climática para apoiar e articular as ações no combate à mudança do clima. “Mas, além de terem vindo atrasadas, tais ações ainda não são suficientes”, declarou.
Guetta salientou que nas terras indígenas, as áreas mais preservadas do país, o combate aos incêndios não tem surtido efeito. “Um exemplo de medida adicional fundamental seria a adoção de ações preventivas de forma coordenada antes do período seco. Outro é a adoção de um ambicioso plano de recuperação florestal que possa reduzir situações de seca extrema. Ainda há muito a ser feito se quisermos enfrentar com efetividade a ‘pandemia do fogo’ e a emergência climática.”
Mais recursos e mais brigadistas
A previsão de recursos específicos para a fiscalização e o combate aos incêndios aumentou durante o ano. Inicialmente estava destinado um aporte de R$ 171,5 milhões no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O número subiu para R$ 267,5 milhões. “Mesmo assim deveria ter aumentado mais e deveriam ter sido contratados mais brigadistas”, analisou Suely Araújo.
Até o fim de agosto, o Ibama havia contratado 1.907 brigadistas, incluindo chefes de brigada e de esquadrão. Uma nova portaria permite que o número chegue a 2.227. Somados aos profissionais do ICMBio, o número de profissionais passa de 3 mil. Eles atuam nas áreas públicas federais, nas terras indígenas e nas unidades de conservação, mas também auxiliam os estados em biomas como a Amazônia e o Pantanal.
No domingo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino decidiu que o governo pode abrir créditos extraordinários para o combate aos incêndios florestais e para a contratação de brigadistas, recursos que ficarão fora da meta fiscal. É a partir dessa decisão que o governo anunciou os R$ 514 milhões, que serão usados por diversos ministérios.
Fogo contra o combate ao desmatamento
Pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) e copresidente do Painel Científico para a Amazônia, o climatologista Carlos Nobre trabalha com uma hipótese: que parte dos incêndios possam ser uma forma de criminosos tomarem terras públicas, principalmente na Amazônia.
“Historicamente, os criminosos fazem o trabalho inicial, que é a geração do mercado ilegal de terras. Eles desmatam uma floresta, deixam secá-la por dois meses e colocam fogo. Todas as cinzas das plantas e árvores são fertilizantes para o solo pobre da Amazônia. Plantam gramíneas, o pasto, levam o boi e vendem a terra no mercado ilegal. Depois, politicamente, procuram legalizá-la. Essa é a lógica”, explicou.
Nobre destaca que o combate ao desmatamento tem sido efetivo no governo atual. Como o processo de desflorestamento pode levar dias e semanas, imagens de satélites alertam fiscais, que podem embargar as áreas e emitir multas. “Então, como os criminosos vão fazer o desmatamento? Fogo.”
Segundo o pesquisador, o sistema de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) é suficiente para o combate aos incêndios. Entre uma hora e meia e duas horas após a ignição, é possível detectar o fogo e enviar brigadistas ou bombeiros. No entanto, o tempo é curto se o objetivo é prender os criminosos. “Tem que desenvolver um sistema de detecção do fogo muito mais deficiente”, avaliou. Ele sugere o uso de drones e inteligência artificial, por exemplo.
Na decisão de domingo, o ministro do STF Flávio Dino também frisou a questão do combate policial. Ordenou que os recursos do Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-Fim da Polícia Federal (Funapol) sejam direcionados para investigações e medidas de combate a crimes ambientais no país. E solicitou que todos os entraves à investigação sejam levados a ele.
É praticamente um consenso, também, que as penas para quem colocar fogo de forma ilegal, mesmo em práticas agrícolas, devam aumentar. Atualmente, a punição para quem ateia fogo de forma irregular é de 2 a 4 anos de prisão. Para Suely Araújo, o governo federal deveria enviar um projeto de lei ao Congresso Nacional com urgência constitucional.
Mas mesmo se for aprovado um projeto com esse objetivo, também será preciso fiscalizar o cumprimento da lei. Porque há 90 anos, desde o Código Florestal de 1934, são necessárias solicitações de autorizações para os órgãos ambientais para o uso do fogo. “É, provavelmente, a regra ambiental mais descumprida do país”, declarou Araújo.