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Jogo de azar legalizado pode causar caos na Saúde no Brasil

Regras para atuação das empresas de cassino e bets serão publicadas até o fim do mês pelo Ministério da Fazenda. Especialistas alertam que país não tem estrutura para tratar vício em jogos, que só deve crescer.

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O Brasil definirá até o fim deste mês as regras para as empresas de jogos de azar e apostas no país, incluindo aquelas dedicadas às apostas esportivas, conhecidas como bets, e os caça-níqueis, como o Fortune Tiger, o “Jogo do Tigrinho”. Entretanto, o foco da discussão nos aspectos financeiro e fiscal, como arrecadação de impostos e exploração comercial das plataformas, está deixando em segundo plano o debate sobre a capacidade do país em lidar com o aumento do vício em jogos.

A cerca de uma semana para acabar o prazo previsto na Agenda Regulatória estabelecida pelo Ministério da Fazenda, a Secretaria de Prêmios e Apostas  ainda não publicou a portaria com as diretrizes e práticas para monitorar, prevenir e tratar o chamado “jogo patológico”, considerado uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2018. As regras podem já nascer atrasadas, pois o país não tem dados atualizados sobre o fenômeno. 

Os dados mais recentes são de, pelo menos, uma década atrás, segundo o psiquiatra Rodrigo Machado, do Ambulatório de Dependência Tecnológica do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). Um levantamento da USP de 2014 mostrou que 1% da população brasileira poderia desenvolver jogo patológico ao longo da vida, enquanto outro estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de 2009, mostrou que 1,6% dos adolescentes entrevistados tinham problemas com jogos de azar.

“São dados defasados, pois naquela época você não tinha os cassinos online disponíveis via smartphone, não tinha a disseminação das bets esportivas. A gente não consegue ter acesso a um cenário real estatístico no Brasil, nem dizer se há um aumento de casos”, explica Machado.

Segundo ele, a USP tem um projeto de pesquisa para estudar a prevalência de transtornos do jogo no Brasil, mas cujo financiamento foi negado duas vezes pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Salto no número de atendimentos via SUS 

Os dados mais atuais do Ministério da Saúde mostram que, entre 2018 e 2023, o número de pessoas atendidas por jogo patológico no SUS aumentou, saindo de 108 para 1,2 mil. Mas esse número pode estar subnotificado, segundo Machado: “No nosso serviço, há fila de espera de oito meses, que vem crescendo nos últimos anos. A gente não está dando conta de atender à população.” Segundo o psiquiatra, o ambulatório da USP viu desde 2018, quando o Brasil passou a liberar os jogos de azar ainda sem regulamentação, um aumento de quatro vezes na procura de atendimentos por vício nessas plataformas. 

Machado também cita falta de preparo dos profissionais de saúde para identificar o vício e de locais para atender a população. “Os poucos serviços especializados estão saturados no cenário atual. Então, com a abertura do mercado, a gente vai enfrentar um cenário de calamidade na saúde. Não estamos preparados”, alerta. 

De acordo com Anna Lúcia Spear King, psicóloga do Instituto Delete da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os profissionais brasileiros precisam ser treinados para identificar não só o jogo patológico, mas outras doenças de saúde mental associadas a ele. “Uma pessoa pode procurar responder nos jogos de azar às características de um transtorno de origem, ou seja, usar essas ferramentas para extravasar, ficar menos estressada ou ansiosa”, diz. Segundo ela, de cada dez pessoas que chegam ao instituto atualmente, três têm problemas com jogos de azar. 

“Faltam regras claras sobre jogo responsável no Brasil”

Diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR), André Gelfi diz que no Brasil atualmente operam tanto empresas que já implementam medidas de prevenção e combate ao vício em jogos em outros países quanto aquelas que desconsideram essa questão. “Uma indústria não regulada tem uma perspectiva mais distante da realidade social brasileira, então isso limita o trabalho de conscientização que poderia estar sendo feito”, argumenta. 

Para Galfi, o boom do “Jogo do Tigrinho” é um sintoma dessa falta de regras claras sobre jogo responsável no Brasil: “Hoje a situação no mercado é bastante preocupante, cada um faz o que quer.” 

O que diz o Governo Federal

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que, atualmente, o atendimento para jogo patológico está sob responsabilidade da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A pasta disse que deve integrar um Grupo de Trabalho Interministerial para tratar do tema, e que a medida está em discussão no Ministério da Fazenda.

O Ministério da Fazenda, por sua vez, respondeu que trabalha num conjunto “robusto de regras para detectar precocemente transtornos em apostas e apoiar os apostadores antes que seu comportamento se agrave”. Isso incluirá o monitoramento de apostadores quanto ao tempo e dinheiro gasto com apostas, bem como a imposição de mecanismos aos operadores de apostas para detecção e restrição de usuários patológicos. O órgão também diz que faltam dados confiáveis sobre a quantidade de pessoas viciadas em jogos de azar no Brasil. 

Mecanismos de controle de vício têm limitações

Existem três mecanismos mais utilizados dentro do mercado de jogos de azar para prevenir o vício: os sistemas de autoexclusão, softwares de bloqueio em dispositivos eletrônicos e bloqueios de operações bancárias. A implementação e eficácia dessas estratégias, porém, depende de regulação e de um esforço conjunto entre as operadoras do setor, governo e instituições financeiras.

Os programas de autoexclusão estão dentro dos sites e aplicativos de jogos e permitem aos jogadores se excluírem por períodos de tempo definidos ou indefinidos. Os softwares de bloqueio, por sua vez, podem ser instalados em computadores, celulares e tablets, e permitem restringir o acesso aos jogos e conteúdos associados, como as propagandas. Já os bloqueios das operações bancárias são feitos pelos bancos após análise do perfil financeiro do jogador. 

A professora Julia Hörnle, do Centro de Estudos de Direito Comercial da Universidade Queen Mary de Londres, ressalta, entretanto, que mecanismos bancários de bloqueio efetivos precisam ser vinculados à conta do usuário. Do contrário, “alguém que está passando por um momento crítico pode ir ao caixa eletrônico e sacar dinheiro”. Ela defende que os bancos treinem funcionários para identificar pessoas vulneráveis e encaminhá-las para atendimento psicológico.

Para Hörnle, a regulamentação também não pode delegar a responsabilidade em lidar com o vício apenas às empresas do setor. “Os jogadores viciados são os que gastam mais, então são os melhores clientes. Portanto, as operadoras não vão querer perder essas pessoas”, pondera. No Reino Unido, onde essa abordagem foi utilizada, as empresas passaram a dar bônus e ingressos gratuitos para jogos de futebol às pessoas com problemas com jogos de azar. “Eles eram tratados como VIPs, e havia vários jovens, especialmente homens, cometendo suicídio depois de se arruinarem financeiramente.” 

Hörnle diz ainda que é preciso limitar o acesso da indústria de jogos de azar ao perfil comportamental e financeiro dos jogadores. “As operadoras agem de maneira contraditória, pois podem fingir estar em conformidade com a regulamentação, apoiando as pessoas com problemas de jogo patológico, mas ao mesmo tempo usar esses dados no marketing, para incentivar mais pessoas a jogarem”, afirma. 

Não há um consenso sobre a melhor abordagem

A estrutura dos sistemas de saúde, bem como a atuação das operadoras de jogos e dos governos diante do jogo patológico, vêm mobilizando atualizações nas regulamentações ao redor do mundo.

Um estudo publicado na revista científica The Lancet, que analisou mudanças legislativas nas regulações entre 2018 e 2021, mostrou que mais de 80% dos países permitem alguma forma de jogo de azar e a maioria deles considera o jogo patológico um problema de saúde pública. 

De 33 países que fizeram grandes mudanças na legislação desde 2018, 75% incluíram algum foco em medidas de saúde e proteção ao consumidor. Porém, as medidas para cuidar do vício em jogos de azar, na maior parte das vezes, não abordam danos a terceiros, como parentes e amigos, nem o impacto social e econômico para o país. Somente a Alemanha, segundo o estudo, menciona o aumento da disponibilidade dos produtos como fator capaz de aumentar a taxa de pessoas adoentadas. 

Mesmo mercados regulados há quase 20 anos, como o do Reino Unido e o de Malta, ainda patinam nas abordagens para identificar pessoas viciadas em jogos de azar e definir tratamentos. Os dois países mudaram as regras, desde o ano passado, para estabelecer parâmetros mais claros de identificação de jogadores vulneráveis. 

Movimentando todos os anos 15 bilhões de libras esterlinas e atingindo cerca de 48% da população mensalmente, o Reino Unido revisou suas regras para jogos de azar e atualizou a metodologia de identificação de vício. As operadoras passaram a ser obrigadas a compartilhar com a agência reguladora, a Gambling Commission, dados de clientes com risco potencial para o vício. As empresas também devem impor limites de apostas para caça-níquel online e criar controles mais rígidos de marketing de bonificação. O país tem sete clínicas para tratar o jogo patológico.

Em Malta, uma portaria dedicada à proteção dos jogadores e vinculada à Lei do Jogo de 2018 prevê que os operadores demonstrem que estão evitando a participação de menores de idade e pessoas vulneráveis nas plataformas. Em 2023, emendas introduziram os chamados marcadores de dano, como quantia e frequência de valores transacionados pelo jogador, uso de múltiplos métodos de pagamento e reversão de saques pendentes. A legislação, entretanto, ainda é mais focada na proteção financeira do usuário que na questão de saúde. Ainda assim, a Malta Gaming Authority (MGA), reguladora do setor, passou a determinar que os operadores devem treinar os funcionários que interagem com os jogadores para identificar sinais de jogo patológico.