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“Lira não é mais o todo-poderoso, e o Centrão se partiu”

Cientista político Sérgio Abranches diz que a dinâmica de coalizão no terceiro governo Lula será distinta da qual ele conduziu nos mandatos anteriores, mas projeta que o petista terá governabilidade.

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Durante o governo Jair Bolsonaro, o orçamento secreto, a delegação de mais poder ao Congresso e a prática de governar via decreto suspenderam o chamado presidencialismo de coalizão, um mecanismo para construir governabilidade por meio da cessão de cargos em ministérios a partidos aliados do presidente no Congresso.

O termo que descreve esse sistema foi cunhado pelo cientista político Sérgio Abranches no fim dos anos 80. Em entrevista à DW, ele afirma que, com Luiz Inácio Lula da Silva no Planalto, esse mecanismo voltará a operar – com algumas mudanças, pois o Legislativo não cederá fácil o poder que conquistou, mesmo depois que o Supremo Tribunal Federal declarou o orçamento secreto inconstitucional.

“Há alta probabilidade de o Congresso manter uma fatia do poder que adquiriu durante o governo Bolsonaro”, diz Abranches, autor de O Tempo dos Governantes Incidentais e a A Era do Imprevisto. Mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que deve ser reeleito nesta quarta-feira (01/02), não será mais o “todo-poderoso” que foi no governo Bolsonaro, afirma.

DW: O que aconteceu com o presidencialismo de coalizão no governo Bolsonaro?

Sérgio Abranches: Temos que começar pelo seguinte. O presidencialismo de coalizão não é uma escolha do presidente. É uma imposição da nossa estrutura sócio-política, da diversidade federativa e social do país e do multipartidarismo.

Nas eleições de 2018, o que aconteceu foi uma ruptura não do presidencialismo de coalizão, mas do modelo que formava o presidencialismo e a oposição. Esse mecanismo foi se enraizando a partir de 1994, na primeira eleição de FHC, e a disputa bipartidária entre PT e PSDB com uma terceira força que, na melhor das hipóteses, chega a 20% dos votos. Quando isso acontece, a eleição vai para o segundo turno, e essa terceira força tem certa influência na formação do governo.

Esse sistema começou a ficar problemático em 2014. Um dos sinais da ruptura foi a quebra do pacto de respeitabilidade aos resultados eleitorais pelo Aécio Neves (PSDB), que contestou o resultado das eleições.

Em 2018 é eleito Bolsonaro, um aventureiro, um deputado medíocre. Ele não tem base nem talento político, nenhuma capacidade de articulação. Equivocadamente, imaginou que poderia desobedecer ao imperativo da coalizão e fazer um governo baseado nas bancadas temáticas, principalmente Bíblia, bala e boi – evangélicos, armamentistas e ruralistas. O que evidentemente não funciona, porque a maioria dos evangélicos não é armamentista, uma boa parte do agro não é evangélico. Essas bancadas só são coesas nos temas que as interessam.

O Bolsonaro, então, começou a resolver essa crise governando por decreto. Quando começou a se sentir ameaçado pela possibilidade de impeachment e de ser processado por crime comum, ele convalidou a ideia do orçamento secreto. Isso não é presidencialismo de coalizão. Ele abdicou do poder presidencial e transferiu o poder de gestão efetiva para a Câmara e para o Senado.

Passou-se a ter um varejo para distribuição das verbas públicas, o presidente tentando governar por decreto e veto, e o Congresso muitas vezes bloqueando os decretos do presidente, derrubando vetos. Ficamos numa situação de desgoverno, com um ministério incompetente e esvaziado da substância que interessava aos parlamentares, que é fazer obras nos redutos eleitorais e distribuir verba. Não tinha governo, tinha uma coisa arbitrária, tanto do lado do presidente quanto do Congresso. Daí a situação em que a gente se encontra.

Como se dará o presidencialismo de coalizão no terceiro governo Lula, já que ele aumentou o número de ministérios e cedeu alguns para partidos como União Brasil e PSD, que não são de esquerda? Vamos voltar ao que tínhamos antes de Bolsonaro?

Não dá para voltar, houve muitas mudanças em relação aos primeiros governos Lula, como a proibição de coligações proporcionais e a cláusula de barreira. A relação dentro do Congresso mudou, e se decidiu o que vai acontecer com o orçamento secreto, mas é muito provável que haja um novo arranjo para o Congresso manter uma fatia do poder que adquiriu durante o governo Bolsonaro.

Vai ser uma nova dinâmica, mas vai ser presidencialismo de coalizão, pois o governo do Lula é de coalizão, até mais ampla que a dos seus outros governos. Embora tenha os melhores ministérios, o que é clássico – o FHC também fez isso – ministérios importantes foram distribuídos a pessoas que não compartilham das posições do Lula.

O Congresso continua sendo tão forte? E qual será o papel do Arthur Lira, que deve se reeleger presidente da Casa?

O Lira definitivamente não é mais o todo-poderoso, porque vai haver restrição nas regras das emendas parlamentares e de relator. Isso é inexorável, senão o Lula não governa. O Lula sabe disso, e isso tem que ser negociado com mais dureza.

Uma das demonstrações de que o Lira não tem mais o mesmo poder é que ele está prometendo benesses para se eleger, como dobrar o auxílio-moradia para quem não tem apartamento funcional ou flexibilizar a restrição legal aos partidos que não conseguem ultrapassar a cláusula de barreira. Ele está ofertando um pacote clientelista na Câmara, o que já é uma demonstração de fraqueza. O Lira não é mais o mesmo, será outro.

E como fica o Centrão?

Ele se partiu. O Centrão ficou coeso em torno do Bolsonaro porque havia uma expectativa de reeleição. Após a derrota, o Bolsonaro não tem a menor importância a não ser para o grupo de bolsonaristas eleitos, como Ricardo Salles, Damares Alves, Eduardo Pazuello e Sergio Moro. Esse grupelho bolsonarista vai tentar fazer algum ruído, mas é gente que não entende nada do processo legislativo, da política em si.

O Centrão se dividiu, tem um PL que está dividido, com uma fração que está querendo aderir ao governo Lula. O Centrão é uma configuração dos políticos mais oportunistas do Congresso, aqueles que efetivamente se elegem para serem governistas, não têm nenhuma vocação de oposição.

Partidos com vocação de oposição são positivos para democracia. Os governistas que são um problema, porque estão sempre atrás das benesses e não trazem nenhuma contribuição adicional para o governo, não ajudam na qualidade das políticas públicas, no fortalecimento da democracia. Só tiram e não dão.

Agora, tem partido que participa das coalizões governistas e contribui, como o MDB, por exemplo. O Lula consegue fazer, se manejar bem, uma coalizão que tenha menos Centrão que talvez nas outras coalizões dele, e com maioria.

É de se esperar que o governo Lula tenha governabilidade para colocar em prática as mudanças que pretende, como na área social?

Vai ter governabilidade. A governabilidade é dada até pela quantidade de dado negativo que o Bolsonaro produziu, tanto na política quanto na área social. A área social é consenso, é unânime, não há menor dúvida que precisamos acabar com a fome, reduzir a pobreza e as desigualdades.

E temos a questão econômica. Tem que ver qual equilíbrio vai ter. Se conseguirem uma política fiscal que financia as políticas progressistas sem desequilibrar as contas do governo e sem elevar demais a dívida pública, vão ter um ano de graças.

A Lava Jato e os últimos governos do PT foram marcados por denúncias e críticas relativas à formação de coalizões. Ainda existe essa imagem por parte da opinião pública, ou a experiência do governo Bolsonaro mudou a percepção sobre a construção de coalizões?

O conceito é de governo compartilhado. Na Alemanha é assim. A aliança entre social-democratas, verdes e liberais faz com que o programa de governo seja compatível com as ideias fundamentais e proporcional às ideias de cada um.

Só que, toda vez que tem corrupção, tem punição. No Reino Unido teve, na França também, nos Estados Unidos e em outros países. O problema é que, devido ao fato de a política brasileira ter essas maleabilidades que outros países não têm, a impressão da população é que todos os políticos fazem o “toma-lá, dá-cá” ilegítimo e que se beneficiam, pagam propina, recebem propina. Isso não faz parte da ideia de coalizão e não pode fazer parte da lógica do governo.

É evidente que a Lava Jato descobriu corrupção na Petrobras e em outros lugares, tanto que o dinheiro foi devolvido. Tem evidências. Mas depois ficaram claras as arbitrariedades que Sergio Moro conduziu, sobretudo nos processos contra Lula. O Moro prestou um desserviço à luta contra a corrupção porque deslegitimou tudo, mas teve partes que estavam corretas na operação.

Vamos precisar um dia limpar essa questão da Lava Jato. De fato enganaram muito, tinha no primeiro momento a aparência de que era uma investigação em todos os sentidos muito séria. Depois ficou claro que nem tudo estava errado, sobretudo na área da política, embora vários políticos estivessem mesmo imiscuídos seriamente em corrupção.

A sociedade brasileira ainda está machucada com essa questão. Acho que o governo Lula tem que tomar cuidado nesse ponto em particular. Não pode dar a impressão que está voltando ao passado, porque esse passado condena. Não a ele Lula, mas condena a política, a ideia da coalizão, a ideia de compartilhar governo. Tem um problema aí que a gente vai ter que resolver.