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Não governamentais? Muitas ONGs atuam como ‘cavalos de Troia’ da hegemonia, dizem especialistas

A investigação da ONG Transparência Internacional, ordenada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli pela participação daquela na operação Lava Jato, marca apenas mais uma instância em que o terceiro setor deixa suas digitais para a desestabilização de um governo.

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De casos mais famosos, como a corroboração da Anistia Internacional do testemunho falso de Nayirah, utilizado para justificar a Guerra do Golfo, a outros menos conhecidos, milhares de organizações não governamentais são utilizadas por governos e empresas privadas para influenciar processos políticos ao redor do mundo.

Para Williams Gonçalves, professor titular de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com a capacidade de pautar discussões, “não há dúvidas de que ONGs de presença internacional são capazes de desestabilizar governos“.

“Principalmente aquelas que atuam em áreas sensíveis da política internacional, como os direitos humanos, o meio ambiente e o caso específico aqui da corrupção.” Essas ONGs, afirmou, têm capacidade de “mobilizar pessoal técnico especializado” e “difundir seus estudos pelo mundo”.

Financiadas através de órgãos governamentais, como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), e não governamentais, como o The National Endowment for Democracy (NED), e entidades privadas, como a Open Society e a Fundação Ford, as ONGs, “portadoras do projeto neoliberal, cumprem uma função política e ideológica de legitimação e aceitação” de reformas impopulares, afirma Carlos Montaño, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor dos livros “Terceiro Setor e Questão Social” (2002) e “Identidade e classe social” (2021).

No Brasil, explica Montaño, as ONGs não possuem uma tipificação jurídica exata, se encaixando como Organização Social (OS) ou Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), entidades “criadas no governo de Fernando Henrique Cardoso para promover o chamado ‘terceiro setor’ e o desmonte social do Estado“.

Historicamente, no entanto, sua ação remonta a décadas antes da presidência de FHC. “Na América Latina”, diz Montaño, “as ONGs surgem e se expandem no contexto do chamado ‘desenvolvimentismo’, que representa um projeto do grande capital internacional, no contexto da Guerra Fria, de gerar e se apropriar dos superlucros dos países periféricos“.

Dentro desse contexto, elas se misturam aos movimentos sociais, só que enquanto estes são formados por sujeitos necessitados de alguma reinvindicação de classe, as ONGs são compostas por agentes, remunerados ou voluntários, “que se mobilizam na resposta a necessidades, interesses ou reivindicações alheias“.

A partir da crise do capital na década de 1970 e da extinção do bloco soviético, as ONGs passam a “afinar seus objetivos mais ao projeto neoliberal do que às demandas populares”. É uma ideologia que, segundo Montaño, legitima o desmonte social do Estado e constitui um processo de “autorresponsabilização” do indivíduo, de “desresponsabilização” social do Estado e de desoneração do capital.

“Conformando uma verdadeira armadilha do ‘Cavalo de Troia’. Se as entidades representativas do grande capital não conseguem invadir as muralhas dos setores populares, dentro das ‘palatáveis’ ONGs elas penetram tais muralhas, impondo seu projeto ‘desde dentro’.”

Esse caráter de se infiltrar no pensar da população é o que Thiago Rodrigues, cientista político e professor no Instituto de Estudos Estratégicos (Inest) da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica a partir do conceito de hegemonia: “Um conjunto de ideias e valores que passa a ser adotado pela maioria da população em versões mais ou menos sofisticadas”.

Nessa ação, Rodrigues destacou think tanks como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), fundados em 1961, ligados à CIA e financiados com fundos empresariais, e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), criado em 1969 e financiado pela Fundação Ford, como precursores dessa forma de agir no Brasil.

Esses institutos, por exemplo, “tinham objetivos que eram claramente propagandísticos”, divulgando sua ideologia a partir de livros, documentários e matérias pagas em revistas de grande circulação “com ‘especialistas’ membros desses institutos”.

Essa perspectiva, aponta o pesquisador, é o que explica e possibilitou tamanho apoio e repercussão da operação Lava Jato. “O grande elemento que é hegemônico na sociedade brasileira desde os anos 1960, ou até antes, é o combate à corrupção.”

Chefes de Estado como Jânio QuadrosHumberto Castelo Branco e Fernando Collor justificaram sua chegada ao poder com base no combate a corrupção, lembrou.

“É uma influência do discurso da democracia liberal dos Estados Unidos, da ideia neoliberal de que o governo deve ser mais próximo da noção de empresa do que de público, no sentido tradicional do Estado.”

Só pode haver uma premissa da operação Lava Jato em todos os campos, na esquerda e na direita, “porque há uma hegemonia no Brasil da ideia de luta contra a corrupção”. “E essa hegemonia é construída há muito tempo.”

Rodrigues, no entanto, destaca que a construção da hegemonia não é tão simples assim. “Não foi porque uma ONG falou X, uma ONG falou Y, que tal coisa aconteceu. Existe uma rede montada de muitas décadas que atravessa todo o tecido social.”

Essa construção, diz o especialista, é um processo complexo, “feito a partir de diversas entradas”, como na produção intelectual, na indústria cultural, no cotidiano de trabalho. “São vários elementos”, diz, sublinhando até mesmo a “educação de intelectuais brasileiros fora do Brasil, que ao retornarem se tornam pessoas públicas importantes“, como foi o caso do próprio FHC.

Isso, como dizem Montaño e Gonçalves, sugere que as ONGs trabalham principalmente preparando o terreno social, criando condições férteis para que certos discursos floresçam. No caso do Brasil, a questão da corrupção e da política atravessam a sociedade.

“Se falar de moralização do Brasil, o cara mais corrupto do mundo vai ganhar votos, porque as pessoas acreditam que esse é o mal maior que assola a sociedade brasileira”, afirma Rodrigues.