Essas questões foram exploradas hoje no episódio do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho.
Para começar, Ali Abdul Hakam, cientista político especializado em Ásia e roteirista do canal História Islâmica, destacou o peso das vidas perdidas no conflito. Além dos 41.900 mil palestinos mortos em Gaza, ele mencionou que o Lancet, um período acadêmico de medicina, estima que ainda há cerca de 200 mil a 300 mil pessoas mortas soterradas embaixo dos escombros.
“Obviamente nós só vamos ter uma ideia quando a guerra acabar porque as autoridades israelenses e os colonos não estão permitindo que a Organização das Nações Unidas e a Cruz Vermelha atuem e levantem esses dados.”
Do lado israelense, o único número oficial divulgado é de mortos no ataque de 7 de Outubro: 1.139, segundo o governo. Não oficialmente, as coisas também não estão bem para Israel. De acordo com Hakam, as Forças de Defesa de Israel (FDI) atualmente têm 70 mil combatentes internados, sem contar os mortos.
O grande número de baixas do lado israelense, acusa o cientista político, se deve ao combate assimétrico enfrentado pelas FDI.
Ainda que seja uma força mais treinada, organizada e tecnológica, é muito difícil uma força militar regular lutar contra uma insurgência, ainda mais agora quando o gap tecnológico diminuiu graças à evolução dos drones e dos mísseis. “Não existe base na literatura da guerra moderna.”
Como exemplo, Hakam lembrou da invasão do Vietnã pelos Estados Unidos que atolou o Exército norte-americano, desgastou a opinião pública e “praticamente quebrou a economia dos EUA”.
“A qualidade de vida do americano médio foi achatada depois da guerra do Vietnã e desencadeou todos os problemas posteriores. Alguns nós estamos vendo se desenrolar no cenário geopolítico até a atualidade.”
Nesse sentido, sublinha o especialista, o risco da economia israelense colapsar é ainda maior do que a estadunidense, uma vez que não só é inúmeras vezes menor e não tem a capacidade industrial norte-americana, como também as FDI são dependentes de reservistas, retirando mão de obra da força de trabalho a cada convocação e a cada perda.
“A situação fica periclitante e o Netanyahu não aceita nenhuma solução política, diplomática. Ele quer uma solução militar, mas não tem jeito.”
Expansionismo colonial
Para Ramez Philipe Mansour, doutor em geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da rede estadual de ensino, o motivo pelo qual o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, não cessa as hostilidades é porque está em prática um antigo plano de “expansionismo territorial colonial de Israel”.
“O movimento sionista reivindica como seu espaço vital toda a área, todos os territórios entre os rios Nilo e Eufrates […]. É um projeto antigo do qual Netanyahu é a expressão mais cristalina.”
Desse modo, afirma o geógrafo, o “contra-ataque” do movimento palestino Hamas em 7 de Outubro foi aproveitado pelo estado israelense como pretexto para ocupar de vez a Faixa de Gaza.
“Isso foi planejado, incluindo o extermínio do povo palestino na Faixa de Gaza e os pogroms contra a população palestina autóctone na Cisjordânia.”
Para se sustentar na região, os fundadores de Israel já sabiam que o país necessitaria do apoio de uma potência imperialista, afirma Mansour. No caso, os Estados Unidos surgiram como o principal fiador israelense após a queda das principais potências após a Primeira e Segunda Guerra Mundiais.
Por outro lado, para os EUA, a presença de Israel na região é fundamental para “manter a frente estratégica de contenção da Rússia”.
Mansour explica que desde antes da Guerra Fria se desenharam três frentes de combate à Rússia, hoje sucessora da União Soviética no espaço euroasiático.
Há a frente do leste europeu, onde hoje ocorre o conflito ucraniano; existe a frente do extremo-leste asiático, mantida pela tensão entre Taiwan e a República Popular da China; e, também, o Oriente Médio, onde os Estados Unidos não têm controle direto e precisam de Israel para defender seus interesses.
“Uma derrota de Israel nesse contexto é uma derrota dos Estados Unidos, e seria visto como um fracasso nesse projeto dos EUA de dominar todo o espaço euro-asiático.”
Guerra em Gaza ‘sepulta a ordem mundial’
Em sua fala ao Mundioka, Ali Abdul Hakam avaliou as consequências geopolíticas da guerra em Gaza, como a desmoralização da Organização das Nações Unidas (ONU), que se viu incapaz de desenvolver uma solução para o conflito.
“Os Estados Unidos sequestraram a ONU junto de Israel, que já está em um nível de Estado pária nos mesmos moldes que era a África do Sul durante o apartheid e, mesmo assim, não se permite que soluções diplomáticas sejam buscadas.”
Hakam lembrou que a Liga das Nações, organização intergovernamental criada após a Primeira Guerra Mundial para impedir mais um conflito de escalas globais, “acabou de forma tremendamente semelhante no século passado”.
Para o especialista, uma reforma da ONU não será capaz de reestruturar a ordem internacional.
“Só o fim da ONU. E a construção de alguma outra organização.”
Essa nova ordem, por sua vez, dificilmente será liderada pelos Estados Unidos, que mantêm uma visão de realidade como se ainda fosse 1991, destacou Ali Hakan, “quando a União Soviética colapsou e eles eram o único poder.”
No mundo atual, multipolar, outras potências crescem cada vez mais seu poder diplomático. Um exemplo é a China, que “está participando ativamente da reconstrução do Afeganistão”.
“E lembro a vocês que a China recentemente conquistou, a nível geopolítico, algumas vitórias diplomáticas muito importantes, como fazer o Irã e a Arábia Saudita sentarem para conversar.”