Às 11h30 do dia 31 de março de 1964, acontecia na Casa Branca, em Washington, uma reunião tensa. Autoridades americanas discutiam o envio de apoio aéreo e naval àqueles que, no Brasil, conspiravam para a derrubada do governo de João Goulart (1919-1976), o Jango.
O contexto era o da Guerra Fria, em que tanto Estados Unidos quanto União Soviética disputavam zonas de influência pelo mundo. O agravante: apesar de Jango jamais ter se alinhado ao socialismo, havia um receio – em parte provocado por suas reformas de base – de que ele quisesse alinhar o Brasil ao bloco soviético.
Documentos então confidenciais do governo americano – revelados pela primeira vez em pesquisa acadêmica da historiadora americana Phyllis R. Parker e publicados no Brasil apenas em 1977 – mostravam que Washington já monitorava as movimentações políticas brasileiras desde 1961.
Às 13h50 daquele último dia de março, o comando militar dos EUA decidiu enviar ao Brasil um porta-aviões e dois destróieres, além de um grupo de apoio de helicópteros embarcados em outro navio, acompanhado de quatro destróieres. Ficou acertado que a força-tarefa sairia de um porto da Virgínia às 7h do dia seguinte e chegaria ao Brasil – na região do porto de Santos – entre 10 e 14 de abril.
Batizada de Operação Brother Sam, esta foi a estratégia militar oferecida pelos americanos a quem planejava a destituição de Jango e a implementação do golpe de 1964, de fato ocorrido em 31 de março.
“Foi uma operação naval que o governo dos EUA montou para ajudar na derrubada de João Goulart. Montaram uma frota com navios de guerra, porta-aviões, cargueiros trazendo petróleo e munições”, resume o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Eram provisões para ajudar o lado dos golpistas. Se ocorresse uma guerra civil no Brasil provavelmente haveria intervenção norte-americana. Eles não estavam mandando uma frota aqui à toa.”
Além de armas, também consta que os navios trariam gás lacrimogêneo, que poderia ser usado para conter multidões em protestos e rebeliões. Na avaliação do pesquisador, “a participação norte-americana no eventual conflito teria um impacto muito grande”.
A ideia da operação era garantir que, em caso de resistência de Jango e seus apoiadores, o golpe tivesse armas para conter revoltosos e, por fim, conseguisse derrubar o governo. As munições se justificavam pelo receio de que a população contrária à intervenção militar, em geral alinhada à esquerda, contasse com treinados guerrilheiros armados prontos para o conflito. Os navios petroleiros também tinham seus motivos: temia-se que o comando da Petrobras, como forma de resistência, cortasse o fornecimento de combustíveis ao país.
Todo o planejamento da Brother Sam ocorreu por meio de telegramas entre o governo americano e a embaixada dos EUA no Brasil. Em 1º de abril, a Casa Branca queria saber se “o impulso continuaria do lado anti-Goulart sem incentivo oculto ou ostensivo de nossa parte”. Então embaixador no Brasil, o diplomata Lincoln Gordon (1913-2009) respondeu que “o impulso claramente pegou”. Horas mais tarde, Gordon acrescentou que a “rebelião democrática” estava “95% vitoriosa”.
Era a senha para o desmonte da operação. Mas autoridades americanas demonstraram cautela, sobretudo receosas de que faltasse petróleo disponível no Brasil. A ordem para dissolver a força-tarefa só foi dada às 20h do dia 2, e os navios então iniciaram um retorno aos EUA. Segundo documentos revelados apenas nos anos 1970, a operação custou 2,3 milhões de dólares aos cofres americanos.
Professor na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o historiador Daniel Aarão Reis acrescenta que “eles não vinham propriamente para invadir o Brasil, mas para dar uma cobertura política e diplomática aos golpistas”.
“Tanto os agentes da CIA [o serviço de inteligência americano] quanto os políticos brasileiros conservadores esperavam que haveria muita resistência [ao golpe] e cogitavam a hipótese de uma guerra civil, que não aconteceu”, ressalta Reis.
O contexto da Guerra Fria
“Basicamente foi uma operação de apoio, de sustentação ideológica, política e, principalmente, militar dos EUA ao golpe civil-militar de 1964”, analisa o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré. “Ela se configurou, sim, como participação americana no golpe, tendo em vista principalmente o contexto da Guerra Fria que o mundo vivia naquele momento.”
Conforme lembra o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Unesp, “o fantasma do comunismo” assombrava a política americana desde os anos 1950. E isso se agravou após a revolução cubana, em 1959, e a aproximação da ilha à política ideológica soviética.
No governo de John Kennedy (1917-1963), começou-se a alardear “a necessidade de novas estratégias, amparadas em ações coordenadas e informações racionalmente seguras”, para conter o avanço da esquerda no mundo, explica Martinez. “Se as reformas sociais eram o apelo do discurso comunista na América Latina, caberia aos EUA antecipar a realização destas, afastando os perigos da tentação política e ideológica das opções concorrentes e ameaçadoras dos interesses e dos valores norte-americanos”, avalia o professor.
Pelas dimensões continentais, pela localização estratégica e pelo peso econômico e político, o Brasil estava nesse radar. E o resultado, pontua Martinez, “foi a montagem de estruturas, equipes, orçamentos e ações voltadas para prevenção, monitoramento e articulações políticas, econômicas e militares em tempo real ou imediato”.
“Buscava-se antecipar a presença e a participação dos EUA nos momentos vividos e atentamente observados e diante das perspectivas indicadas pela massa de dados, informações, estatísticas, análises, relatos, comparações e projetos em todos os países latino-americanos”, contextualiza.
“Para tanto foram adotadas medidas para expandir e organizar a atuação de assessores, acadêmicos, jornalistas, adidos culturais, econômicos, políticos e militares instalados em consulados, embaixadas, universidades, empresas e a sociedade civil em diferentes países na América Central, do Sul e o Caribe.”
Repercussão do apoio americano
O historiador Motta avalia que o apoio americano teve um papel importante na opinião pública, como se o governo dos EUA estivesse de alguma forma legitimando o golpe.
“As pessoas ficaram sabendo disso, que os Estados Unidos tinham mandado uma frota. E entenderam que isso tinha uma importância tremenda, que quem tinha o apoio americano tinha um trunfo enorme. É possível que isso tenha desanimado o presidente João Goulart a resistir ao golpe, por saber que haveria uma intervenção norte-americana para ajudar os golpistas”, comenta ele.
Durante muito tempo, contudo, a participação dos americanos no golpe era desacreditada e tratada como uma espécie de “narrativa conspiratória da esquerda”. Quando esses documentos vieram à pública, portanto, houve um ganho historiográfico importante.
“Revelou-se que os americanos operaram, ajudaram a planejar o golpe no Brasil. O que era ‘ilusão da esquerda’ está documentado. Diante das ameaças de resistência, os Estados Unidos enviaram dois porta-aviões em uma possível invasão ao Brasil”, diz o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
O historiador Reis frisa que o episódio não deve ser entendido com “aquela visão simplista muito comum de que ‘tudo começou em Washington’, como se o golpe de Estado fosse uma expressão brasileira de um golpe arquitetado nos Estados Unidos”. “Nada mais falso do que isso. Evidentemente que os golpistas buscaram apoio do governo norte-americano, mas a ideia partiu daqui”, afirma o historiador.
Mesmo com a operação abortada, ficou o registro. Em 1964, os EUA deixaram de ser Tio Sam e se apresentaram como “brother” do Brasil – tudo em nome de um interesse ideológico comum.