De acordo com um decreto do ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, todas as “unidades voluntárias” russas que lutam na Ucrânia devem assinar um contrato com seu ministério até 1º de julho. Até 22 de junho, mais de 20 grupos envolvidos na invasão russa da Ucrânia já o haviam feito. O Ministério da Defesa justificou a medida dizendo querer dar às tropas um “necessário estatuto legal”.
No total, existem mais de 40 dessas estruturas militares na Rússia. Foi o que disse Nikolai Pankov, vice-ministro da Defesa da Rússia, mas sem especificar a quem exatamente o ministério se referia. Pois desde o início da guerra, a pasta classifica também os membros de companhias militares privadas como “voluntários”.
A primeira a assinar um contrato foi a “companhia de voluntários” chechena Achmat, segundo o Ministério da Defesa russo. No entanto, Yevgeny Prigozhin, fundador do mais famoso exército privado, o Grupo Wagner, recusou a proposta. Em 24 de junho, no contexto de um conflito com Shoigu, ele iniciou uma rebelião contra o ministério. Prigozhin já havia criticado a formação de outras “companhias militares privadas” em toda a Rússia. “Eles dizem que um dia haverá uma luta pelo poder e todos precisarão de seu próprio exército privado. Aqueles que têm dinheiro agora acham que criar um exército privado é um grande tema”, disse.
Relatos sobre a tropa Redut
Todos os exércitos privados estariam transformando as forças armadas russas em uma colcha de retalhos caótica de unidades com patrocinadores ricos, segundo escreveu o jornal Financial Times, citando os serviços secretos ucranianos e ocidentais. A primeira força cuja participação na invasão da Ucrânia se tornou conhecida é chamada de Redut. Kiev estima sua força em 7 mil homens. Segundo afirma o portal russo Meduza – agora exilado na Letônia –, citando várias fontes, os mercenários daquelas tropas estiveram entre os primeiros a invadir a Ucrânia e participaram das batalhas perto de Kiev e Kharkiv.
O jornal Novaya Gazeta noticiou sobre a Redut pela primeira vez em 2019. Segundo a reportagem, a força foi criada em 2008 e implantada na Síria para proteger as instalações da empresa russa Stroytransgaz, controlada por Gennady Timchenko, amigo do presidente russo, Vladimir Putin. Igor Girkin, também conhecido como Strelkov, o ex-“Ministro da Defesa” da autoproclamada “República Popular de Donetsk”, descreveu Timchenko como o proprietário da Redut. Fontes da Meduza e do Novaya Gazeta também vinculam a força ao Ministério da Defesa, de mesma forma que o canal russo do Telegram Rybar, defensor da invasão da Rússia na Ucrânia.
“Contrapeso para o exército regular”
Pavel Luzin, especialista em política externa e de defesa russa, diz que a força Redut não é exatamente uma empresa militar privada. Ele também a associa ao Departamento de Defesa. “Os mercenários foram originalmente usados pela Rússia para três propósitos principais: criar um contrapeso ao exército regular, poder operar fora do sistema burocrático e dos procedimentos administrativos estabelecidos e proteger a liderança política e militar da responsabilização”, diz Luzin.
Na opinião dele, dada a decadência do exército regular, os mercenários e as chamadas “companhias de voluntários” permitem contornar as restrições. “Ou seja, o exército russo está evoluindo para um exército irregular. Mercenários e ‘voluntários’ servindo sob regras diferentes são um contrapeso aos soldados contratados comuns e recrutados servindo sob as regras antigas, as quais o próprio Ministério da Defesa tem dificuldade para cumprir”, diz o especialista.
Tropas da Gazprom?
Em fevereiro de 2023, o serviço secreto ucraniano foi o primeiro a relatar que a Gazprom estava montando sua própria força mercenária. Kiev se baseou no fato de que o primeiro-ministro russo, Mikhail Mishustin, permitiu que a empresa de energia criasse uma organização de segurança privada. Segundo fontes do jornal Financial Times, a estatal começou a recrutar “voluntários” para a guerra em agosto do ano passado. Seriam as tropas Potok e Fakel. O Financial Times também descobriu que os funcionários de uma empresa da Gazprom na Rússia central foram informados de que duas pessoas teriam que se voluntariar para a guerra. “Eles disseram: a Gazprom irá armar vocês, nós pagaremos a vocês mais dinheiro do que os soldados contratados normais recebem”, disse um guarda de segurança que estava presente na reunião. Segundo o jornal, também houve tais reuniões na Gazprom na Sibéria, após o que seis homens foram enviados de lá para Soledar no Donbass com contratos de três meses, e o próximo grupo foi para Bakhmut por seis meses.
Várias fontes indicam que as tropas Potok e Fakel estão ligadas à Gazprom. É o que relatou um prisioneiro de guerra russo em um vídeo publicado em abril deste ano. O homem se apresenta como Alexander Tkachenko, natural de Orenburg. O serviço russo da BBC encontrou sua página na rede social russa VKontakte, onde uma filial da Gazprom em Orenburg foi listada como sua empregadora. Um obituário de um russo que morreu na guerra também foi encontrado, no qual Potok era citado como sua unidade. Além disso, em dezembro do ano passado, a televisão estatal russa informou sobre “Voluntários do Batalhão Fakel” que estavam em serviço de combate ao sul de Donetsk.
Em abril, Yevgeny Prigozhin disse que as tropas da Gazprom participariam da guerra. Ao fazê-lo, criticou aqueles que criariam tais associações, acusando-os de falta de treinamento, equipamentos e liderança. Em maio, apareceu nos canais do Telegram um vídeo dirigido a Putin mostrando militares que se diziem membros da força Potok.
Não há informações precisas sobre a força das unidades Fakel ou Potok. Sua influência no campo de batalha foi descrita como “insignificante” por um ex-alto funcionário russo falando ao Financial Times. O Wall Street Journal avaliou que essas companhias possuem “vários milhares de homens”. Para comparação: de acordo com dados de inteligência do Reino Unido e dos EUA, 50 mil homens serviram no Grupo Wagner de Prigozhin na Ucrânia, dos quais até 40 mil eram prisioneiros recrutados.
Para que servem os exércitos privados?
Os especialistas atribuem o aumento do número de tropas mercenárias ao fato de o Kremlin querer recrutar o maior número possível de pessoas para a guerra sem ter que realizar mais mobilizações. “Agora a Rússia se tornou um Estado mobilizado em todos os níveis. Quando se trata disso, há uma necessidade urgente de treinar combatentes, e Putin quer fazer isso sem recrutas ou mais mobilização“, diz o historiador Mark Galeotti, fundador da empresa londrina de consultoria Mayak Intelligence.
“Há ordens para recrutar voluntários de várias maneiras, inclusive por meio de ricos órgãos públicos e privados que têm dinheiro suficiente para mobilizar pessoas”, disse um ex-alto funcionário russo ao Financial Times.
Além disso, financiar tais estruturas é uma forma de oligarcas e corporações demonstrarem sua lealdade ao Kremlin. De fato, em setembro de 2022, Putin realizou uma reunião fechada com representantes de grandes empresas, onde sugeriu que os participantes a mobilizar e financiar voluntários para irem à Ucrânia. Isso é relatado por Olga Romanova, chefe da organização não governamental Rus Sidyashchaia (Rússia atrás das grades), que teve que deixar a Rússia anos atrás.
Os interlocutores do Meduza também consideram esse recrutamento uma mobilização encoberta. Eles afirmam que a linha entre as tropas mercenárias, o exército regular e os “voluntários” na guerra na Ucrânia é completamente tênue.