O mundo mudou de eixo e caminha cada vez mais rápido em direção à era do multilateralismo, mas essa mudança será tudo, exceto pacífica. É o que afirma em entrevista especial ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, o jornalista investigativo Pepe Escobar, apresentador do podcast Pepe Café, que mora em Moscou e há pelo menos dez anos vem debatendo a construção desse novo paradigma global.
Ele afirma que a hora da mudança está chegando, mas adverte que “o contra-ataque do mundo antigo vai ser cada vez mais brutal”.
“Vai ser um contra-ataque de guerra híbrida, de desestabilizações, de mais revoluções coloridas e, eventualmente, até de guerra quente [confronto efetivo]. Então, nós todos, da maioria global, como o ministro [das Relações Exteriores da Rússia] Sergei Lavrov agora fala abertamente, nós temos que estar muito atentos porque o império e as suas variações são um leão acuado, e eles ficam muito mais perigosos em uma situação como essa”, afirma Escobar.
Escobar aponta que há elementos que permitem ser “cautelosamente otimista”, como a expansão do BRICS, o fato de o grupo ser presidido este ano pela Rússia e o alinhamento entre Moscou e Pequim, as duas potências mundiais que, segundo ele, sabem perfeitamente como esse jogo é pesado, mas que têm “capacidade de virar o jogo”. Porém, ele acrescenta que falta ao Brasil definir seu papel dentro do grupo.
“E é algo que, nessa minha estadia no Brasil, eu quero aprender qual vai ser o papel do Brasil [no BRICS] […]. Eu vim tentar saber qual é realmente o papel do Brasil durante o resto do governo Lula, evidentemente, e, em especial, o fato de como o Brasil vai se alinhar como um dos líderes do BRICS e não estando a reboque, que no momento é uma situação um pouco complicada. O Brasil não tem um papel definido no BRICS, neste momento, de protagonista.”
Ele afirma ter ouvido de fontes importantes de dentro do BRICS “que esperam um papel mais ativo do Brasil, que no momento não existe”.
“E tem um problema muito sério, […] o mais sério de todos, que é o banco do BRICS, o NDB [Novo Banco de Desenvolvimento]. Dilma [Rousseff] é a presidente do NDB no momento. O problema é que o mandato da presidente Dilma acaba no fim do ano. A próxima presidência vai ser russa, mas os russos não podem esperar até o fim do ano para começar medidas realmente sérias de reestruturar o NDB”, explica.
“O que eu tenho ouvido de outros membros do BRICS é que ela [Dilma Rousseff] poderia ter um papel um pouco mais ativo e, por uma série de razões que nós desconhecemos, também não está acontecendo”, acrescenta.
Escobar cita como exemplo o debate sobre a desdolarização nas transações entre membros do BRICS que, em sua avaliação, não teve a sequência esperada.
“Como é que você pode ter um banco de desenvolvimento de países do Sul Global utilizando a moeda do inimigo? É impossível. Você tem que começar a mudar os estatutos [do NBD], e isso é um negócio que vai demorar. Os únicos que têm o cacife na mesa para fazer isso são os russos. Com a presidência, isso significa esperar até o ano que vem. Mas eles não podem esperar este ano [passar], porque a cúpula deste ano é em Kazan [na Rússia], em outubro, e eles têm que ter decisões geoeconômicas hiperimportantes para o BRICS 10 [número de membros após a expansão do grupo] e para aquela fila de 40 [países] que querem entrar no BRICS. São mais de 40 já, eram 30 e poucos. Toda semana tem alguém que quer entrar no BRICS.”
Terrorismo de Estado é uma arma do Ocidente
Escobar critica a forma como as notícias são veiculadas na mídia ocidental que, segundo ele, trazem “camadas e camadas de propaganda” sob as quais “a informação se dilui”. Ele afirma que a nova geração, os mais jovens, já perceberam isso e passaram a buscar informação em outros meios, sobretudo as redes sociais.
“Eu vou dar um exemplo prático, que é talvez o mais flagrante dos últimos meses. A verdadeira razão por que o TikTok deve ser banido nos Estados Unidos, que jamais vai ser admitido oficialmente, porque a garotada americana pega suas informações sobre o genocídio na Palestina via TikTok e são praticamente todos pró-Palestina”, explica.
“O TikTok destruiu o mito do sionismo nos Estados Unidos entre as jovens gerações. Esse é um fenômeno tão complexo e tão aterrador para as elites, tão aterrador para, por exemplo, o Congresso americano, que é totalmente dominado pelo lobby israelense e pelo lobby sionista, que a reação deles é típica, sanções”, complementa.
Questionado sobre o ataque massivo do Irã contra Israel e os impactos que o acirramento entre Teerã e Tel Aviv pode ter, Escobar ressalta que o que o Irã fez foi “responder a um terrorismo de Estado” perpetrado pelos israelenses.
“É […] [terrorismo de Estado] Israel soltar mísseis em cima da residência do embaixador iraniano em Damasco, que também é o prédio do consulado. Isso daí, entre outras coisas, destruiu a Convenção de Viena, que regula a imunidade diplomática no planeta inteiro. Além de ser um ataque terrorista contra um terceiro Estado em um terceiro país. Você atacou não só o Irã, como atacou a Síria. Você atacou a Síria e o Irã ao mesmo tempo. A ilegalidade, na verdade, é dupla, e algo ainda mais importante, o alvo, que era um comandante do IRGC [Corpo de Guardas da Revolução Islâmica] iraniano, que era o coordenador do Irã com a Síria e o Líbano, estacionado em Damasco. Ele estava numa missão diplomática. Então você atacou um diplomata também, ou seja, tudo o que eles infringiram é um negócio completamente absurdo.”
Escobar afirma que Israel imaginou que o ataque ao consulado não resultaria em nada, uma vez que o Irã estava há anos em uma doutrina que ele classifica como “paciência estratégica”. Porém, ele afirma que dessa vez Teerã respondeu com um ataque em três níveis.
“Eles lançaram uma série de drones, uma série de mísseis de cruzeiro e uma série de mísseis balísticos. Eles saturaram as defesas aéreas de Israel, que são as mais sofisticadas do mundo. Passaram [pela defesa israelense] alguns dos mísseis e os mísseis balísticos. Praticamente todos chegaram ao alvo.”
Ele diz que duas bases israelenses localizadas no deserto de Neguev foram alvejadas, uma por cinco mísseis balísticos, outra por quatro. Segundo Escobar, as bases, que ficaram totalmente destruídas, eram estações de inteligência que monitoravam a área das Colinas de Golã, “ocupadas ilegalmente por Israel”.
“Por isso que Israel não soltou uma imagem [do ataque às bases]. […] os israelenses ficaram absolutamente petrificados, porque isso nunca aconteceu na história. Então essa é a nova equação, e os próprios iranianos, na terminologia nova que eles inventaram, falam abertamente: ‘Olha, agora existe uma nova equação, a nova equação é muito simples. Se vocês nos atacam, seja onde for, a gente vai responder na hora, em segundos, minutos ou na hora, literalmente.'”
Escobar afirma que a resposta de Teerã tinha como alvo Israel e os Estados Unidos, aliado incondicional de Tel Aviv, e destaca que houve conversa diplomática direta entre Teerã e Washington antes do ataque, o que é uma mudança, uma vez que as tratativas entre as partes antes se davam “sempre por vias interpostas”.
“Duvido que isso tenha saído [na mídia] no Brasil. William Burns, chefe da CIA [Agência Central de Inteligência], pegou um avião e foi para Omã. […] chega lá em Omã e tem uma delegação iraniana e o pessoal de Omã, os anfitriões. Sentam na mesma mesa, Burns pergunta: ‘E aí? A gente sabe que vocês vão ter que responder, o que vocês querem fazer?’ Os iranianos falam: ‘Olha, nós vamos responder da nossa maneira, mas não vamos atacar vocês, americanos, nem civis americanos nem bases americanas.’ Aí William Burns fala: ‘Tudo bem, mas vocês sabem o que vão fazer já?’ A resposta iraniana foi: ‘Bom, vai ser provavelmente um consulado ou uma Embaixada israelense ou instalações militares de Israel.’ Aí Burns de novo: ‘Nenhum ataque a civil, não, só isso.’ O que isso nos ensina? Que a CIA deu passe verde para os iranianos responderem, contanto que fosse o que eles estavam prometendo. Eles sabem que os iranianos são muito corretos, não mentem, não faz parte do modelo mental persa mentir.”
Escobar afirma que, ao saber das tratativas, as relações entre Washington e Tel Aviv “começaram a despencar”, o que explica a situação do presidente dos EUA, Joe Biden, “mendigar aos israelenses” que não respondam ao ataque iraniano.
Porém, ele afirma que isso agrava a situação do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu.
“A única coisa que ele [Netanyahu] pensa é que se a guerra acaba ele vai para a cadeia. Literalmente, estou resumindo ao máximo uma situação extremamente complexa, mas a única coisa que o mantém fora da cadeia é o fato de que o país está em guerra.”
Escobar afirma ainda que Israel não foi o único país ocidental a fazer terrorismo de Estado nos últimos anos, e cita a entrevista dada pelo presidente russo, Vladimir Putin, ao jornalista americano Tucker Carlson, na qual Putin, ao ser questionado sobre a explosão do Nord Stream, disse ao entrevistador: “Vocês, [americanos], que explodiram o Nord Stream.”
“Porque esse é o tabu supremo, pelo menos nos últimos dois anos. O grande tabu é o fato de que os Estados Unidos praticaram um ato de terrorismo de Estado, não só contra a Alemanha, seu principal aliado europeu, mas contra a União Europeia como um todo, contra a Rússia via Gazprom e contra uma série de empresas europeias que operam o consórcio Nord Stream. Ou seja, é um ato terrorista também em várias gradações.”
Ele sublinha que o caso, que ele aponta como o maior furo investigativo do milênio, foi denunciado pelo premiado jornalista investigativo Seymour Hersh, que tem seu trabalho reconhecido há décadas. Porém, destaca que o furo de Hersh não teve o espaço merecido na mídia americana, e que o jornalista se tornou vítima de uma campanha de desqualificação.
“Ninguém nos Estados Unidos o publica mais. Ele foi jogado para fora porque desmistifica e vira de ponta-cabeça todas as mentiras do sistema.”
Escobar acredita que o ataque ao Nord Stream serviu para neutralizar a Alemanha, que Washington estava percebendo como “uma potência industrial com aspirações globais”.
“Isso [a ascensão da Alemanha] é uma ameaça aos interesses do império, e ainda por cima com essa relação próxima com a Rússia. Um monte de investimentos alemães na Rússia e energia barata a rodo da Rússia para a Alemanha. Antes mesmo do bombardeio do Nord Stream, já dava para perceber que a agenda era essa. E não deu outra. Quando bombardearam o Nord Stream, essa bola já estava cantada. Os caras fizeram isso mesmo, porque eles acham que não vai acontecer nada, como não aconteceu até agora. E se acontecer, vai ser bem mais tarde”, afirma o jornalista.