Ao longo do último ano, a Rússia denunciou a existência de atividades biomilitares dos Estados Unidos na Ucrânia. Com as provas apresentadas por Moscou, governos de diversos países, incluindo China, Irã e Venezuela, exigiram explicações de Washington
O tema, após justificativas escorregadias do Departamento de Estado norte-americano, passou a receber um tratamento enviesado da imprensa ocidental, como se fizesse parte da guerra de narrativas que envolve o conflito ucraniano.
Entretanto, na avaliação de Rogério Anitablian, analista de política internacional consultado pela Sputnik Brasil, a questão carece de maiores explicações, principalmente após a recusa da Organização das Nações Unidas (ONU) à criação de uma comissão que investigaria os laboratórios biológicos.
A proposta, apresentada pela Rússia, foi derrubada no Conselho de Segurança da organização, com vetos de Reino Unido, França e EUA. Dessa forma, a ONU decidiu que tomaria como verdade as declarações de Washington sobre o assunto e que o mundo deveria fazer o mesmo.
Os EUA, entretanto, deram versões distintas sobre a existência dos laboratórios. Em um primeiro momento, negaram. Depois, diante das provas, alegaram que os laboratórios biológicos que eles têm apoiado na Ucrânia têm como objetivo “reduzir as ameaças herdadas de armas nucleares, químicas e biológicas deixadas nos Estados sucessores da União Soviética”.
Onde está o multilateralismo da ONU?
A desculpa, como aponta Rogério Anitablian, é insuficiente. A avaliação dele é que existe a “necessidade de uma investigação em razão da existência de uma demanda legítima e da dúvida que foi gerada”.
Além disso, diz, é papel das organizações multilaterais esclarecer esse tipo de questão, se não existissem problemas envolvendo o crédito atribuído a essas entidades de discussão global.
Para o analista, a ausência de uma investigação independente sugere a existência de “algo em que esses países não têm interesse que seja revelado”. “Podem ser outros segredos em relação a aspectos militares que muito provavelmente esses atores não querem que venham à tona”, comentou.
O ponto fundamental nessa discussão, segundo Rogério Anitablian, não são as possiblidades perigosas que envolvem a criação de laboratórios biológicos.
O ponto crítico, enfatizou o pesquisador, é que “uma organização multilateral, acreditada pelos principais atores internacionais, deve realizar seu trabalho de forma isenta e averiguar” questões pertinentes, eliminando quaisquer dúvidas.
“A necessidade de cooperação internacional é evidente, e mais ainda a necessidade de reformulação no próprio Conselho de Segurança e nos seus mecanismos, que possa levar a uma atuação mais efetiva”, afirmou.
As denúncias de Moscou
Há meses, a Rússia vem revelando evidências sobre o funcionamento de laboratórios utilizados pelos Estados Unidos na Ucrânia para atividades biomilitares.
Moscou inclusive divulgou os nomes dos envolvidos no projeto secreto promovido por Washington, como Curtis Bjelajac, que ocupava o cargo de diretor-executivo do Centro de Ciência e Tecnologia na Ucrânia (STCU, na sigla em inglês).
Documentos obtidos pelo Ministério da Defesa da Rússia confirmam a conexão entre o STCU e o departamento militar dos EUA por meio do principal contratado do Pentágono, a empresa de engenharia Black & Veatch. Os papéis revelaram que os EUA gastaram mais de US$ 200 milhões (R$ 1 bilhão) em trabalhos de diversos laboratórios biológicos na Ucrânia.
O Ministério da Defesa russo afirmou que “os programas de pesquisa mais controversos do ponto de vista do direito internacional são implementados pelos Estados Unidos fora do território nacional”.
Um exemplo dessas práticas “são as experiências relacionadas à infecção pelo HIV [vírus da imunodeficiência humana, que está na origem da Aids], que têm sido conduzidas por especialistas americanos em território ucraniano desde 2019”, envolvendo “condenados”, “viciados em drogas” e “representantes das Forças Armadas da Ucrânia”.
Segundo a Defesa russa, tais programas estariam sendo encerrados neste momento e transferidos pelos EUA e seus parceiros para outros países, tanto da Europa como de outras regiões.
Em junho de 2022, o Pentágono não apenas confirmou a existência dos laboratórios biológicos, como também revelou que o Departamento de Defesa dos EUA, nos últimos 20 anos, forneceu apoio a 46 instalações biológicas “pacíficas” na Ucrânia, além de centros de saúde e diagnóstico de doenças.
Na época, a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos dos EUA, Victoria Nuland, disse que Kiev e Washington estavam trabalhando “para evitar que os materiais acumulados” nos laboratórios “caiam nas mãos das forças russas”.
Guerra biológica?
Segundo Rogério Anitablian, o grande perigo não é que o material seja encontrado pelo Exército russo, mas a total falta de garantia quanto ao uso por grupos extremistas. Ele aponta que existem organizações terroristas no mundo com capacidades de destruição muito aquém de seu poderio financeiro.
“É algo que precisaria ser investigado e que precisaria, mais uma vez, de uma organização multilateral acreditada” que não estivesse refém do editorial da mídia ocidental, que questiona pouco esse tipo de assunto.
“É simplesmente impossível dizermos que esses grupos terroristas não têm acesso, eventualmente, a esse tipo de material [biológico]”, “o que é muito mais grave” na ausência “de um debate público em que se possa estabelecer o contraditório”, disse o analista.
Embora avalie que “os riscos de uma guerra biológica são menores do que no passado”, pois “a opinião pública não admitiria a utilização desse tipo de armamento”, o grande problema é a eventual utilização velada.
“Nesse aspecto, claro, se você tivesse uma investigação eficiente, você acabaria” com as dúvidas sobre o assunto, concluiu.