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Os projetos pró-crime organizado de Lira & Cia

Há dois projetos sobre delação premiada na Câmara e os dois aniquilam a eficácia dessa ferramenta para o combate aos piores crimes

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A Câmara dos Deputados, sob o comando sempre ínclito de Arthur Lira (PP-AL), quer aprovar uma lei em benefício do crime organizado e dos corruptos de colarinho branco. De quebra, pode resolver a vida de políticos enrolados, como Jair Bolsonaro e Chiquinho Brazão. 

Trata-se de destruir a eficácia das delações premiadas, um dos poucos instrumentos disponíveis no Brasil para o combate a estruturas mafiosas, com chefões e soldados, ou que se valem de mecanismos avançados de ocultação e lavagem de dinheiro. 

Segundo a lógica dos sempre ínclitos líderes partidários, tráfico de drogas, tráfico de armas, tráfico de órgãos, assassinatos e extorsões realizados por milícias, disseminação de pornografia infantil e corrupção massiva na máquina pública são coisas feias, mas com as quais se pode conviver.

Perversidade mesmo é celebrar acordo de colaboração premiada com um facínora em prisão preventiva. 

Mão de gato

Tentou-se realizar a manobra à mão de gato nesta quinta-feira, 7. A votação ocorreria em regime de urgência e só não houve porque, em paralelo a um barraco pavoroso entre Nikolas Ferreira (PL-MG) e Janones (Avante-MG), a deputada Luiza Erundina (Psol-SP) passou mal e foi levada a uma UTI.  Não havia mais clima para sessão no plenário. 

Há dois projetos sobre o tema. O mais antigo foi protocolado pelo ex-deputado petista Wadih Damous, em 2016. O mais recente, pelo deputado Luciano Amaral (PV-AL), no ano passado. 

O projeto de Damous vai direto ao ponto. Ele diz que colaborações não podem ser celebradas quando o delator está preso. 

Todo mundo notou a ironia: um projeto feito sob encomenda para livrar a cara de Lula, na época do petrolão, acabaria servindo para anular a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro – que dessa forma se veria aliviado de encrencas mil. 

Vale dizer que o deputado Chiquinho Brazão (sem partido) e seu irmão Domingos, acusados de ordenar o assassinato de Mariele Franco, também poderiam ganhar um presente, uma vez que o miliciano Ronnie Lessa estava preso quando os delatou.

Sabe-se lá quantos casos parecidos há pelo Brasil.

Sutileza mal intencionada

Com o naufrágio da manobra para votar o tema na calada da noite, Arthur Lira se apressou em dizer que o projeto do petista “é muito ruim”. A intenção, na verdade, era aprovar o projeto de seu conterrâneo alagoano Luciano Amaral, que foi apensado ao mais antigo. Que pela lógica, deveria ser “muito bom”, certo?

Pois então: o projeto de Amaral é mais sutil, mas também aniquila a eficácia das delações. 

Em vez de simplesmente proibir acordos realizados com delatores presos, ele diz que deve-se “presumir ausente” a voluntariedade de qualquer colaboração firmada nessas circunstâncias. 

E qual a razão para isso? O fato de as prisões brasileiras serem atrozes, diz o deputado em copiosas páginas de justificação. Segundo Amaral, entrar na cadeia já equivale a tortura. Por causa disso, o pobre miliciano ou o pobre corrupto em prisão provisória se veriam compelidos a fazer qualquer coisa para sair dali – inclusive entregar os comparsas, que horror.

Se toda delação feita na cadeia se presume forçada, as autoridades teriam de provar, diante de um questionamento, que o sujeito não se sentia coagido na hora de assinar a papelada. O que é impossível. Todas as delações estariam assentadas sobre areia movediça. 

Atrapalhar a polícia

Como parêntese, lembremos que o STF, na sempre ínclita figura do ministro Dias Toffoli, já trata de demolir um dos critérios objetivos que servem como atestado de que uma delação foi voluntária: o assessoramento por advogados. O empresário Marcelo Odebrecht estava acompanhado dos melhores conselheiros que o dinheiro pode pagar quando assinou uma delação. Mesmo assim, Toffoli considerou que ele foi coagido.  

Há um segundo dispositivo no projeto de Luciano Amaral. Ele diz que pessoas citadas numa delação têm o direito de impugnar tanto as alegações feitas a seu respeito quanto a homologação do acordo.

É uma forma brilhante de atravancar o trabalho da polícia. Pode-se prever que investigações ulteriores, com base nessa colaboração, ficariam paralisadas até que as impugnações fossem julgadas pelo Judiciário. Os bandidos ganhariam um tempo precioso para sumir com provas, escafeder-se ou tomar outras providências. 

Por onde quer que se olhe, não há como dourar a pílula. Esses projetos, que encantam os deputados, não são pró-garantias individuais, são pró-criminalidade. Da pior espécie.