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Planalto esvaziado e máquina pública em ruínas anteciparam o Governo Lula

Lula antecipa a formação do governo para conter as turbulências na economia e para desarmar uma crise que ameaçava ganhar corpo na área militar. O petista precisou entrar em campo também para destravar as negociações da PEC do Bolsa Família, que dependem de maior apoio no Congresso

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Brasília vive dias estranhos. O mandatário permanece confinado no Palácio do Alvorada, enquanto o presidente eleito é obrigado a preencher o vácuo político acelerando a formação de seu governo. Bolsonaro continua calado, à espera de uma sublevação militar que não virá. Ao mesmo tempo, Lula corre para evitar que cresçam as turbulências na economia, por causa da ausência de definição em seu projeto econômico. O petista também percebeu que cresciam os ruídos na área militar, cultivados pelo bolsonarismo. Por isso, já antecipou a definição nesse setor vital. Os últimos dias foram intensos na capital federal, para onde o futuro presidente se deslocou, com uma agenda intensa.

“HOMEM DE MISSÃO” Geraldo Alckmin voltou a ser cogitado para a Fazenda diante das resistências a Haddad (Crédito:Mateus Bonomi )

Lula já sabia que receberia o País em uma situação mais delicada do que a de 2003. Mas a herança maldita de Bolsonaro rende dores de cabeça ao petista antes mesmo da transmissão da faixa presidencial. Lula deparou-se com um vazio no centro do poder, que resulta da reclusão de Bolsonaro — ainda inconformado com a derrota — e de um apagão de dados em várias áreas. Não bastasse, enfrenta no Congresso um Centrão turbinado e com mais poder de barganha. Diante do campo minado, o petista tenta desarmar bombas e ampliar alianças para fortalecer sua gestão.

O Orçamento está no centro das preocupações. É consenso que Bolsonaro, no apagar das luzes, mandou uma peça de ficção ao Congresso. A lei orçamentária está cheia de armadilhas e não permite o funcionamento da máquina. A prioridade, sob a ótica petista, é aprovar a PEC da Transição, que pode abrir espaço para despesas, ao retirar da conta do teto de gastos R$ 175 bilhões do Bolsa Família e R$ 23 bilhões para investimentos. Depois de um mês travada, a medida entrou em tramitação nesta semana, quando Lula mandou protocolá-la no Senado para, então, estabelecer uma margem para negociação. Grão-petistas admitem, porém, que a PEC deve ficar “mais enxuta” no Congresso, que estuda reduzir o valor extra-teto para algo em torno de R$ 100 bilhões e diminuir o prazo de vigência do texto de quatro para um ou dois anos, a fim de evitar um “cheque em branco” a Lula. De qualquer forma, com mais espaço fiscal, o próximo governo ganhará fôlego.

CORPO A CORPO Lula se reúne com sindicalistas no CCBB, sede do governo de transição, na última quinta-feira, dia 1º (Crédito:FÁTIMA MEIRA)

No Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), o centro do poder em Brasília nesses dias, Lula já começa a reunir os relatórios dos 31 grupos de trabalho da transição, que elencaram as principais deficiências do atual governo. O núcleo da Saúde, por exemplo, reivindicou a recomposição de orçamento de R$ 22,7 bilhões para atender necessidades emergenciais. “Recomendamos o destaque de pontos críticos, como o enfrentamento da Covid-19, a recuperação do Programa Nacional de Imunização, a resolução de problemas gravíssimos na área de assistência da Farmácia Popular e o enfrentamento das filas”, anunciou o ex-ministro Arthur Chioro. Mas a crise atropela qualquer planejamento. Enquanto o CCBB fazia contas, o governo anunciou novo corte de R$ 1,68 bilhão no orçamento do MEC, sendo R$ 220 milhões das universidades públicas e institutos federais. Reitores anunciaram que ficariam sem recursos para pagar a conta de luz no fim de ano.

Lula deseja Haddad como um nome político para a Fazenda. Aliados e o mercado não concordam

O grupo de transição corre contra o relógio, uma vez que o Congresso entra em recesso em 20 de dezembro. Lula queria anunciar seu ministério somente depois da diplomação, prevista para o dia 19 pelo TSE. O cenário adverso levou à antecipação da cerimônia para o dia 12. Depois de conversas conduzidas em São Paulo e Brasília, ele também resolveu antecipar a definição na vital área econômica. Inseriu Fernando Haddad, o preferido para a Fazenda, no núcleo econômico da transição para se reunir com seu time de economistas: Guilherme Mello, Nelson Barbosa, André Lara Resende e Persio Arida. O grupo teve uma longa reunião na terça-feira, 29.

PREFERIDO Fernando Haddad chega ao CCBB na segunda-feira, 28, para se integrar ao grupo econômico da transição (Crédito:WILTON JUNIOR)

O nome de Haddad, porém, é visto com ressalvas. Interlocutores da política e do mercado apostam que a indicação não refletirá a “fórmula de sucesso” de Antonio Palocci, conhecido pelo traquejo. Sublinham que Haddad sabe dialogar com pares da esquerda, mas enfrenta dificuldades para negociar com todo o espectro político. “Lula sempre falou que queria alguém da política na Fazenda. Por quê? Porque ali costuma haver pessoas limitadas na articulação, que acabam engessando os projetos de governo. Vide o Paulo Guedes. Numa gestão em que você tem o tiro curto de quatro anos e não pode errar, precisa de alguém habilidoso. Esse quadro não parece ser Haddad. Ele é um excelente nome técnico, mas não tem o jogo de cintura necessário”, pontua um aliado do PSB, sob reserva.

Há mais. Haddad coleciona episódios de explosão nos bastidores e sofre recorrentes críticas pelo “tom professoral”, lido como arrogância por alguns. Um exemplo dessa atitude, aliás, foi visto em um almoço promovido pela Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), em São Paulo. No encontro, um dos presentes indagou se o governo reproduziria na política econômica conceitos de Karl Marx. Haddad, então, perguntou a qual obra do comunista o executivo se referia. Criou-se, então, uma saia-justa. Para petistas, o futuro ministro poderia somente ter dado uma resposta objetiva. E a pergunta nem era despropositada. A tese de dissertação de Haddad no seu mestrado em economia foi “O caráter sócio-econômico do sistema soviético”. No doutorado em filosofia, “De Marx a Habermas, o materialismo histórico e seu paradigma”. Definitivamente, esse é um background que não anima a banca e causa calafrios em qualquer operador de mesa financeira. Na campanha a governador, Haddad já tinha dado um show de soberba aplicando uma “carteirada” na própria equipe. Numa das reuniões, disparou: “Não sei se vocês sabem, mas eu sou PhD”.

Além disso, considera-se que Haddad nutre por Lula uma fidelidade exacerbada e, justamente por isso, peca em não explicar suas ideias abertamente sem o sinal verde do presidente eleito. Seria um ministro submisso. É a essa lealdade cega que banqueiros atribuem, inclusive, o discurso vazio do petista no almoço-chave da Febraban, em que ele não atendeu aos anseios do mercado e sequer tocou no tema “responsabilidade fiscal”, restringindo-se à retórica batida de que o governo eleito priorizará a reforma tributária. As dificuldades fizeram o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, voltar a ser cogitado para a pasta da Fazenda. Aliados dele, que antes refutavam completamente a ideia, amenizaram o tom e já dizem que “ele é um homem de missões”, pontuando que, embora não deseje assumir qualquer pasta, não negaria um convite formal de Lula, o que não aconteceu ainda. Apesar de Persio Arida ter declarado publicamente não ter interesse em cargos, aliados de Lula e Alckmin ainda contam com a possibilidade de ele assumir Fazenda ou Planejamento. Lembram ser difícil dizer não a Lula.

CONSENSO Ex-deputado e ex-presidente do TCU, José Múcio Monteiro foi escolhido para chefiar a pasta da Defesa: apoio da caserna e elogio de Hamilton Mourão (Crédito:TON MOLINA)

Articulação política

Se Haddad for mesmo o premiado com a Fazenda, a expectativa é de que o poder de negociação do novo governo seja exercido por outros ministérios. A escolha sobre a nevrálgica Casa Civil, por exemplo, ganhou contornos mais definidos. Motivo: a baixa de Gleisi Hoffmann, que, pelo primeiro mês de transição, figurou como a preferida para o cargo, que já ocupou na gestão Dilma Rousseff. Lula vinha dizendo a aliados que, sob a direção correta, a deputada poderia desempenhar melhor a função no seu governo. No final das contas, pesaram contra ela as condições do próprio partido. É que Gleisi tem mandato como presidente do PT até novembro de 2023 e teria de renunciar, abrindo, assim, mais uma disputa interna na sigla, que já está em pé de guerra por cargos na Esplanada.

Para a Casa Civil, Rui Costa passou a ser o mais cotado. O governador da Bahia é visto com simpatia por Lula por ter desistido de disputar o Senado e ajudado a preservar a hegemonia do PT na Bahia, patrocinando a eleição do sucessor, Jerônimo Rodrigues. Costa é elogiado, nos bastidores, pela postura “equilibrada”, “centralizadora” e “proativa”. Não à toa, dizem, ele será eficiente na coordenação dos ministérios, que é a principal atribuição da pasta. Tende a fazer uma dobradinha com Alexandre Padilha, o qual deve ser acomodado na Secretaria de Relações Institucionais, que voltará a ter status de ministério. Assim, Padilha poderá atuar mais diretamente na negociação com o Congresso, tarefa que já cumpriu entre 2009 e 2010.

Nomes da cúpula petista especulam que, como as escolhas dos Ministérios do Planejamento e da Indústria e Comércio (serão mesmo recriados) estão atrasadas, Lula pode formalizar primeiro os responsáveis pela articulação política, e não o time da Economia. Seria inclusive uma forma de dar corpo às negociações sobre o Orçamento, apontando nomes que têm credenciais para assumir riscos em seu nome e, ao mesmo tempo, costurar melhor os apadrinhamentos políticos na Esplanada. Entre as outras pastas, são consideradas certas as indicações de Flávio Dino para o Ministério da Justiça (que não será desmembrado) e de Izolda Cela para o MEC.

Se Lula considera que, por enquanto, ainda tem fôlego para driblar o nervosismo do mercado adiando as escolhas na área da economia, o mesmo não se pode dizer da inquietação na caserna. Uma das poucas certezas em Brasília é que é iminente a divulgação dos escalados para a Defesa. Esse é um terreno delicado para o PT, especialmente depois da criação da Comissão da Verdade no governo Dilma. Lula acelerou sua definição na área porque cresce o número de militares da ativa identificados em atos antidemocráticos. E houve um nebuloso ensaio de insubordinação, que levaria os atuais comandantes das três Forças a transmitirem seus cargos em dezembro, antes da posse do novo governo, quebrando a tradição. Os comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes; da Aeronáutica Carlos de Almeida Baptista Junior; e da Marinha, Almir Garnier, fariam isso com a bênção de Bolsonaro.

Questão militar

Para abortar a crise, Lula desconsiderou o desejo de alas do PT que reivindicavam ao partido o comando do Ministério da Defesa. Escolheu José Múcio Monteiro para o posto. Embora civil, o ex-deputado e ex-presidente do TCU tem excelente trânsito na política e nos quartéis, o qual foi construído, em parte, quando chefiou a pasta de Relações Institucionais, entre 2007 e 2009. À época, Múcio chegou a receber condecorações dos militares. Entre elas, a Medalha do Pacificador do Exército. É um nome conciliador, de fora do petismo, que já foi elogiado pelo próprio Bolsonaro e não representa nenhuma ameaça ideológica aos fardados. O nome foi bem recebido pelo atual comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista, e até pelo atual vice, general Hamilton Mourão.

NOVOS COMANDANTES Lula vai designar os chefes das três Forças usando o critério de antiguidade: Júlio César de Arruda (Exército), Aguiar Freire (Marinha) e Marcelo Damasceno (Aeronáutica) (Crédito:Caninde Soares)

Em paralelo, Lula decidiu respeitar o critério da antiguidade para a escolha dos chefes das três Forças, sinalizando respeito a um princípio caro aos militares. Portanto, Júlio César de Arruda deve ascender ao comando do Exército; Marcelo Damasceno, da Aeronáutica; e Aguiar Freire, da Marinha. Os três devem ser anunciados junto com a indicação do novo ministro da Defesa. “Múcio mostrou-se sempre uma pessoa equilibrada e sensata. Está longe de ser um novato ou alguém que desconheça as peculiaridades da profissão militar”, pontua um coronel que tem canal aberto com o Alto-Comando. O mesmo fardado minimiza a esquisita troca de Comandantes antes da posse presidencial. “Não se trata de insubordinação. A transição começa quando existem sucessores apontados. É uma forma de olhar para frente. Geralmente, as teorias da conspiração são mais interessantes do que a realidade”, relativiza. Apesar da ponderação, o mesmo não ocorreu, por exemplo, no início da gestão Bolsonaro. Na ocasião, respeitou-se a tradição.

Encaminhando a PEC e escolhendo esses setores-chave, Lula já começa a desenhar sua gestão. Isso não significa que ainda não precise se defrontar com armadilhas. No Congresso, o petista conseguiu um acordo com Rodrigo Pacheco e lideranças partidárias para brecar indicações de Bolsonaro a postos estratégicos e, assim, realizar as próprias designações ao início do governo. Com isso, resguardou o direito de escolher, por exemplo, os próximos embaixadores do Brasil na Argentina, na Itália e no Vaticano. Mas o petista não teve a mesma sorte em alguns órgãos. O Sebrae Nacional, por exemplo, negou um pedido de Alckmin pelo adiamento da eleição à presidência e reconduziu ao cargo Carlos Melles, ligado ao governo Bolsonaro. Não é só. Aliada de Ciro Nogueira, a deputada Margarete Coelho conquistou o posto de diretora de Administração e Finanças. Os mandatos são de quatro anos. Antes disso, o ex-ministro sanfoneiro Gilson Machado já havia conseguido uma boquinha na chefia da Embratur, com o mesmo mandato. Essas, apesar de tudo, são pequenas arapucas espalhadas por Bolsonaro no caminho de Lula. A grande armadilha, que o petista começa a desativar, é a questão militar. E resta ainda a bomba fiscal, armada com a farra populista de Bolsonaro. Se esse artefato não for desarmado por mãos certas e habilidosas na área econômica, o País enfrentará o risco de muitos estrondos no próximo mandato.