Search

Por que ainda não há um acordo de cessar-fogo em Gaza

Desde o ataque do Hamas a Israel, em 7 de outubro de 2023, esperanças de uma trégua permeiam o conflito que já custou mais de 40 mil vidas. Quadro de ação para um acordo existe, mas as discordâncias são numerosas.

Compartilhe nas redes sociais

Nos massacrantes dez meses do conflito na Faixa de Gaza, o ciclo tem se repetido: autoridades anunciam que está prestes a ser fechado um cessar-fogo que garantiria o fim dos combates, a segurança dos civis palestinos e a libertação dos reféns israelenses. Mas aí, dias ou apenas horas mais tarde, vêm as notícias de que as negociações chegaram a um impasse e todo acordo está novamente suspenso.

Paralelamente, ouvem-se acusações, tanto de Israel quanto do grupo radical islâmico Hamas, de que o outro está obstruindo um consenso, com exigências desmesuradas e mudanças de última hora. Na realidade já existe um quadro de ação para o cessar-fogo com o qual tanto Israel quanto os palestinos aparentemente concordam – na maior parte.

O atual conflito começou em 7 de outubro de 2023, quando um ataque pelo Hamas resultou na morte de cerca de 1.200 israelenses, enquanto mais de 250 foram tomados como reféns. O grupo fundamentalista islâmico, que administra parte da Faixa de Gaza, é classificado como terrorista pela União Europeia e os Estados Unidos, entre outros.

Desde então, a campanha de retaliação militar pelo governo de Benjamin Netanyahu já matou mais de 40 mil palestinos, a maioria civis, além de obrigar a maior parte dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza a abandonarem suas casas.

A mais recente rodada de negociações para um cessar-fogo começou em maio. Desde então, mediadores de países como os EUA, Catar e Egito têm tentado guiar ambas as partes no sentido de uma solução pacífica.

O quadro básico de ação

Em 31 de maio de 2024, o presidente americano, Joe Biden, traçou, com um certo grau de detalhe, um quadro de ação para o cessar-fogo no Oriente Médio. Alegadamente baseado numa proposta de Tel Aviv, seu plano é praticamente idêntico à proposta apresentada pelo Hamas no início do mês.

Embora o primeiro-ministro Netanyahu afirme tratar-se de um “non-starter” – algo que sequer vale a pena levar-se em consideração –, os negociadores israelenses continuaram a trabalhar com esse esboço. Em junho, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 2.735, que também segue as linhas propostas por Biden, embora de forma bem menos detalhada.

A premissa básica é que o cessar-fogo seria implementado em três fases, com as duas primeiras durando cerca de seis semanas, respectivamente, e a final envolvendo anos de reconstrução.

Fase 1: Nas primeiras seis semanas da trégua, haveria uma “cessação temporária” das operações militares, tanto por Israel como pelo Hamas. As tropas israelenses se retirariam gradativamente e os palestinos desalojados poderiam voltar a seus lares.

Assistência humanitária teria permissão para entrar em Gaza, e um primeiro lote de reféns israelenses – predominantemente mulheres (também soldadas), crianças, idosos e enfermos – seria trocado por centenas de prisioneiros palestinos nas mesmas condições.

Fase 2: As negociações para a segunda fase do processo se iniciariam ainda durante a primeira. Prosseguiria o abastecimento e alojamento dos cerca de 2 milhões de palestinos deslocados, e começariam os planos para reerguer a infraestrutura destruída. Seriam relaxadas as restrições para a travessia de Rafah, na fronteira entre o Egito e Gaza.

O restante dos reféns israelenses – civis do sexo masculino e soldados – seria trocado, mas antes deve se estabelecer “um retorno à calma sustentável (uma cessação permanente das operações militares e hostis”.

Fase 3: Envolve a reconstrução geral da Faixa de Gaza, ao longo de vários anos. Os mortos de ambos os lados seriam devolvidos.

Há ainda outros aspectos do acordo de cessar-fogo que visam influenciar Israel ou o Hamas. Por exemplo, segundo o jornal The Washington Post, houve discussões sobre o grupo militante Hezbollah, sediado no Líbano, retirar-se da fronteira israelo-libanesa; assim como sobre a possibilidade de a Arábia Saudita normalizar as relações com Tel Aviv. Outros relatos sugerem que o Catar, onde se localiza o quartel-general do Hamas, teria pressionado o grupo com a ameaça de expulsá-lo.

Contudo também há certas seções do quadro básico de ação sobre as quais as duas partes não conseguem concordar: algumas têm sido bastante divulgadas, outras menos. Por exemplo: os negociadores mencionaram discrepâncias quanto ao cronograma e aos números e nomes dos reféns.

Pontos controversos do acordo

Fim permanente das lutas: Embora um cessar-fogo temporário durante a Fase 1 pareça ser consenso, o que acontecerá depois tem sido objeto de negociações intensas. Enquanto o Hamas quer garantir que as hostilidades serão suspensas permanentemente depois de ter entregado os reféns, Netanyahu anunciou que não pretende parar de lutar até alcançar a “vitória total” sobre os fundamentalistas palestinos.

No princípio de junho, o Hamas se disse disposto a aceitar um acordo sem o comprometimento prévio escrito, por parte de Israel, do fim das ofensivas. O colunista David Ignatius, do Washington Post, explica assim a aquiescência dos palestinos: uma frase da resolução de junho do Conselho de Segurança estipula que “se as negociações levarem mais de seis semanas para a Fase 1, o cessar-fogo prosseguirá pelo tempo que exijam as negociações”. Isso significa que os conflitos armados estariam suspensos enquanto as conversas continuarem em andamento.

Times of Israel vai mais adiante: tal linguagem “fornece conforto suficiente tanto a Israel, por ter a possibilidade de retomar o ataque, caso o Hamas pare de negociar de boa-fé; quanto ao Hamas, por saber que os mediadores impedirão Israel de recomeçar a guerra”.

Pouco mais tarde, contudo, Netanyahu anunciou outras condições “não negociáveis”, entre as quais que seu país possa continuar com os combates. Esses comentários irritaram tanto negociadores internacionais quanto políticos israelenses, por colocar em risco o acordo pouco antes da retomada das conversações. “Israel parece preocupado de que o Hamas arraste o processo indefinidamente com negociações infrutíferas”, sugeriu a agência de notícias Associated Press.

Na segunda semana de agosto, o New York Times teve acesso a documentos não publicados indicando que – embora houvesse dúvidas quanto à disposição do Hamas em fazer concessões – Israel vem sendo o parceiro “menos flexível” nas negociações mais recentes. O gabinete de Netanyahu rechaça tal afirmação, porém para os críticos do premiê ele estaria arrastando a guerra em nome de sua própria sobrevivência política.

Parceiros de coalizão de extrema direita, que apoiam o governo Netanyahu, afirmam que não aceitarão nenhum tipo de trégua com os palestinos. No começo de agosto, Ismail Haniyeh, negociador-chefe do Hamas no acordo de cessar-fogo, foi morto na capital do Irã, provavelmente por uma bomba israelense.

Quem governa Gaza após um fim dos choques armados: Israel está decidido que não seja o Hamas, enquanto desde novembro este venha insistindo nesse sentido, frisando não querer que a Autoridade Nacional Palestina (ANP) – seu rival político, presidido por Mahmoud Abbas – assuma em seu lugar. Segundo relatos recentes, Israel e o Hamas teriam acordado em que forças apoiadas pela ANP e supervisionadas por outros países, inclusive árabes, assumam o controle temporário da Faixa de Gaza.

Localização das tropas israelenses: O Hamas exige que Israel se retire completamente, enquanto este quer manter tropas em postos no centro da Faixa de Gaza, de modo a impedir a passagem de palestinos armados. Apesar de indicações de que os israelenses se dispunham a retirar-se em maio, aparentemente Tel Aviv negou tal intenção numa carta de julho a mediadores em Roma, enviada pelo gabinete do premiê e examinada pelo New York Times.

Outro ponto de discórdia é a travessia de Rafah, na fronteira Egito-Gaza, antes sob guarda das Forças Armadas egípcias. Israel exige deter o controle dessa área, a fim de impedir o contrabando de armas para o Hamas.