Repetidamente, os Estados Unidos se movem para impedir que nações ao redor do mundo ganhem proeminência no cenário global. Por aqui no Brasil a situação não é diferente, conforme já explicitaram diversos analistas do governo e independentes. Mas por que Washington teme tanto um Brasil forte? O que está por trás do projeto de poder dos EUA?
Desde entraves ao desenvolvimento da nossa indústria a bloqueios em transferências de tecnologias essenciais de Defesa, como o submarino nuclear, os Estados Unidos parecem querer manter o Brasil dentro de uma ordem geopolítica muito clara.
Mais do que parecer, diz Williams Gonçalves, professor titular de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), essa é a “determinação estratégica do projeto de poder” dos Estados Unidos desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial.
“A hegemonia dos EUA no pós-guerra foi construída a partir de uma concepção estratégica bem ampla”, afirma Gonçalves. “Na Europa, a base era a Alemanha, converter a Alemanha numa aliada importante e distante da Rússia. De outro lado, na Ásia, o Japão. O Japão é uma base importante do poder norte-americano.”
“E na América Latina, a base da hegemonia foi teoricamente elaborada da seguinte maneira: não pode haver uma grande potência nas Américas que concorra com os Estados Unidos.”
Brasil: condão para ser ‘grande potência’
O Brasil é o país da América Latina, em especial da América do Sul, que mais tem potencial “para se tornar uma grande potência”, sublinha Gonçalves.
“Tem dimensão, população, recursos naturais e coesão social, todos os fatores que permitem que o Brasil possa se tornar uma grande potência.”
Para Thiago Rodrigues, cientista político e professor no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest/UFF), os Estados Unidos não são contra a totalidade do desenvolvimento econômico brasileiro.
“Nos últimos 20 anos, por exemplo, esse crescimento do Brasil, inclusive do ponto de vista da sua liderança estratégica na região, complementou os interesses dos Estados Unidos”, afirma Rodrigues. Até então, o país serviu como ponto de equilíbrio e moderação regional “entre os governos contrários aos EUA.”
Além disso, ressalta o pesquisador, o desenvolvimento econômico brasileiro não se dá de forma independente.
“Há interesses do capital de origem estadunidense no Brasil”, afirmou. Dentro da lógica globalizada assimétrica, diz, “o Brasil depende muito mais dos Estados Unidos do que os Estados Unidos do Brasil, então o crescimento brasileiro, nesse modelo de assimetria, também favorece os Estados Unidos.”
Nesse sentido, há espaço para que as elites brasileiras se beneficiem da subserviência aos interesses norte-americanos, aponta Gonçalves. “As elites dirigentes do Brasil se conformam docemente a essa posição subalterna.”
Assim, na visão do professor da UFF, o país se encontra dividido politicamente entre uma centro-esquerda democrática e uma “direita e extrema-direita neoliberais e entreguistas”.
“O liberalismo na América Latina vai sempre contra a integração, ele tem um espírito colonial.”
Não é porque há ganhos dos EUA em nosso desenvolvimento que os norte-americanos não o impeçam quando necessário. Um desses exemplos é a indústria de Defesa brasileira, que se bem articulada e desenvolvida poderia rivalizar com os Estados Unidos na região.
“Um Brasil desenvolvido do ponto de vista tecnológico, no setor de defesa, tem impactos econômicos e geopolíticos que não interessam para um país como os Estados Unidos, que têm uma dominância estratégica na região”, diz Rodrigues.
O complexo militar industrial norte-americano é peça fundamental do seu sistema econômico, descreve o pesquisador da UFF, então a criação de concorrentes em outros países não interessa aos norte-americanos. “Do ponto de vista econômico, significa perder contratos das empresas do setor de Defesa dos Estados Unidos.”
É o caso, por exemplo, das vendas do avião brasileiro Super Tucano para a Venezuela.
Como o modelo usa certas partes que contêm tecnologia estadunidense, a venda foi embargada pelos EUA.
O caso da Defesa, aponta Rodrigues, representa os dois âmbitos de dominação norte-americana na região, o econômico e o geopolítico.
Em primeiro lugar, sendo o maior vendedor de armamentos militares para o restante da América, os Estados Unidos conseguem impor seu modelo de vendas: os pacotes de ajuda militar, como foi o Plano Colômbia e a Iniciativa Mérida, dois acordos de segurança e combate ao narcotráfico.
“São grandes pacotes de ajuda militar que são destinados a fazer uma espécie de investimento indireto do Estado americano na sua própria economia de defesa.”
Esses pacotes “entregam dinheiro para outros países, mas há condições nesses contratos para que o equipamento comprado de defesa seja de indústrias americanas”, explicou.
Já a dominação geopolítica, afirma Rodrigues, se dá da seguinte forma: “[…] como os países só têm os EUA para recorrer em suas compras de Defesa, eles se tornam dependentes das tecnologias que os Estados Unidos queiram oferecer e não podem estabelecer seus próprios projetos nacionais.”
Brasil é líder em autonomia no Sul Global
Para ambos os especialistas, o Brasil ocupa certa posição de liderança global nas movimentações por autonomia frente à hegemonia norte-americana. Segundo Williams Gonçalves, isso é exemplificado pelas conexões feitas pelo país com o BRICS e o restante do Sul Global.
Já para Thiago Rodrigues, o que confere maior destaque global ao Brasil não é sua luta pela criação de novos espaços de autonomia que não se contrapõem de maneira rígida ao Norte Global.
“Não é ser totalmente dependente da hegemonia global estadunidense e também não é ser uma potência contra-hegemônica. É aumentar espaços de autonomia dentro da atual arquitetura hegemônica do planeta”, descreveu.
Dessa forma, diz o professor da UERJ, é de fato um líder com capacidade de globalizar sua influência em alguns temas, “como cooperações em energia, sistemas eleitorais, saúde pública, políticas públicas de adaptação, agricultura adaptada e outros”.