A tentativa de golpe na Bolívia nesta quarta-feira (26/06) evidenciou um racha entre dois titãs do partido governista Movimento ao Socialismo (MAS): o atual presidente boliviano Luis Arce e seu padrinho político, o ex-presidente Evo Morales.
Além disso, chamou a atenção para outro nome: o do agora ex-comandante do Exército boliviano Juan José Zuñiga.
Sob às ordens de Zuñiga, alguns militares tomaram as ruas e a frente de prédios públicos e, usando um blindado, tentaram derrubar a porta do Palácio Quemado, antiga sede do governo boliviano.
A insurgência do grupo de militares durou certa de quatro horas e foi condenada por Arce, Morales, pela oposição e por diversos líderes da América Latina e de todo o mundo. Parte dos soldados permaneceu leal ao presidente, e a rebelião foi contida.
Arce denunciou uma tentativa de golpe. E Morales instou seus apoiadores a irem às ruas a favor da democracia, mas alguns de seus aliados afirmam que Arce teria armado um “autogolpe” para conseguir mais popularidade.
Embora inconstitucional, Morales já anunciou que se candidatará a um novo mandato em 2025. Arce é contra. A rusga entre os dois nomes fortes o MAS chegou ao Congresso, paralisando a votação de importantes projetos.
Confira quem são os principais nomes envolvidos na tentativa de golpe na Bolívia.
Evo Morales
Nascido em 1959 na província de Oruro, Evo Morales foi eleito presidente da Bolívia em dezembro de 2005 com mais de 50% dos votos, tornando-se o primeiro líder indígena a ocupar o cargo. Posteriormente, foi reeleito em dezembro de 2009 e em outubro de 2014, desta última vez graças a uma manobra política que o deixou no cargo até o fim de 2019.
Seus dois primeiros mandatos, quando ele focou nos mais pobres, foram descritos por muitos como um período de “milagre econômico”.
Morales sempre fez questão de usar roupas e adereços que remetessem a sua origem andina, mesmo em eventos e viagens oficiais. Antes de ser presidente, se destacou como dirigente dos camponeses produtores de coca do Chapare, inclusive impondo-se contra a crescente influência americana, visto que os Estados Unidos queriam acabar com as lavouras de coca.
Viveu a infância e juventude no campo, onde se envolveu desde cedo com times de futebol e atos sindicais. Na década de 1980, depois de prestar serviço militar obrigatório, mudou-se para a província de Cochabamba, em busca de melhores oportunidades de trabalho.
Em 1995, foi um dos apoiadores da fundação do Instrumento Político para a Soberania dos Povos, que posteriormente se tornaria o MAS. Dois anos mai tarde, se elegeu para o Congresso com a maior votação do país.
Em 2002, concorreu pela primeira vez à presidência, ficando em segundo lugar e consolidando o poder da esquerda indígena. Embora um líder cocaleiro, soube, desde os anos 80, costurar parcerias também com setores sociais urbanos.
Morales chegou ao poder num bom momento econômico e soube usar a seu favor a alta internacional do preço do gás e dos minérios, principais produtos de exportação bolivianos. Entre 2007 e 2012, a economia cresceu em média 4,8% ao ano.
Com o dinheiro, cumpriu suas promessas de beneficiar os mais pobres e promoveu programas de distribuição de renda. Ao mesmo tempo, soubre controlar as contas, reduzindo a dívida pública.
Paralelamente, adotou um programa de nacionalização em setores como gás, petróleo, telecomunicações, transportes e mineração, proibiu a exportação de produtos como soja.
Em 2009, na presidência, promulgou uma Constituição que proibia um terceiro mandato de cinco anos. No entanto, graças a um grande número de juízes indicados, conseguiu convencer o Tribunal Constitucional a lhe permitir uma nova candidatura, calcado no argumento de que o primeiro mandato não entraria no cálculo já que, com a promulgação da Carta Magna, o país teria sido “refundado” e, portanto, ele teria sido presidente de um país antes da Constituição e de outro depois
Em 2016, numa nova tentativa de burlar a Constituição, realizou um referendo questionando se os bolivianos concordavam em mudar as regras para que ele pudesse concorrer a um quarto mandato.
Mesmo com a vitória do “não”, em 2019 Morales concorreu novamente, de forma inconstitucional. Venceu em votação contestada, repleta de alegações de fraude e vista com ceticismo pela comunidade internacional. Isso desencadeou protestos em massa que causaram 36 mortes e obrigaram Morales à renunciar e fugir do país. Um governo interino da oposição de direita assumiu o poder, liderado por Jeanine Áñez, uma manobra que o MAS chamou de golpe.
Em 2020 houve novas eleições, e Morales apoiou a candidatura de seu antigo ministro da Fazenda Luis Arce. Com a vitória do apadrinhado político, retornou ao país, após exílio no México e na Argentina. Nos anos seguintes, porém, a relação entre Morales e Arce se distanciou, piorando a partir de 2023, quando o ex-mandatário externou, mais uma vez, a intenção de tentar novamente a presidência.
Luis Arce
O atual presidente boliviano nasceu em 1963 na capital, La Paz, numa família de professores. Depois do estudo de Economia, fez mestrado no Reino Unido. De volta à Bolívia, trabalhou como funcionário público no Banco Central da Bolívia (BCP) e ministrou cursos em universidades como Harvard, Columbia e Buenos Aires.
Próximo a Morales, em 2006 foi escolhido para comandar a pasta da Fazenda, que três anos depois se tonaria ministério da Economia e Finanças Públicas.
Em seu tempo à frente da pasta, focou na macroeconômica, no déficit fiscal e na expansão das reservas internacionais. Além disso, promoveu medidas de incentivo ao mercado interno, estabilidade cambial e promoção de políticas de industrialização de recursos naturais.
Como ministro de Morales, ajudou a comandar uma economia que cresceu mais rapidamente do que qualquer outra na região na década de 2010, apelidada de “milagre econômico boliviano”.
Em 2017, deixou o cargo devido a um câncer renal, que tratou no Brasil. Após uma longa recuperação, voltou ao país natal e retomou a pasta das Finanças até a renúncia de Morales, em 2019.
Com Morales fora do pleito 2020 mas apoiado por ele, Arce foi eleito presidente como candidato do MAS. Tomou posse em novembro de 2020, com o desafio de unir uma sociedade profundamente polarizada e reavivar uma economia desgastada pela pandemia de covid-19.
Juan José Zuñiga
Com um passado polêmico, Juan José Zuñiga ocupava o cargo de comandante geral desde 2022. Durante o governo Morales, enquanto era chefe do Estado-Maior, foi acusado de estar envolvido num suposto plano para perseguir lideranças políticas.
O ex-presidente também imputou-lhe ser o comandante do grupo militar “Pachajcho”, que supostamente tinha um plano para matar Morales. Em 2022, Morales o acusou de estar por trás de um esquema para desacreditá-lo.
De acordo com o jornal O Globo, Zúñiga também é acusado de envolvimento em um esquema de corrupção que teria desviado até 2,7 milhões de bolivianos (R$ 2,16 milhões) destinados a programas sociais. Por essa razão, ele e outros 12 militares foram sentenciados a sete dias de prisão em 2014.
Na terça-feira, um dia antes de comandar a insurgência de parte dos militares, Zúñiga foi destituído do cargo por Arce, após afirmar que, se Morales retornasse como presidente, ele vai “impedi-lo”.
Antes da tentativa de invasão do Palácio Quemado, Zúñiga comentou a repórteres sobre a raiva crescente no país, que vem enfrentando uma crise econômica com o esgotamento das reservas do Banco Central e a pressão sobre a moeda nacional, uma vez que as exportações de gás diminuíram:
“Parem de destruir, parem de empobrecer o nosso país, parem de humilhar o nosso exército”, disse. A uma estação de TV de La Paz, comentou: “Nós, os três chefes das Forças Armadas. viemos expressar nossa consternação. Haverá um novo gabinete de ministros, certamente as coisas mudarão, mas nosso país não pode mais continuar assim.”.
Na noite de quarta-feira, Zúñiga foi preso e responderá na Justiça por tentativa de golpe de Estado. Foi capturado após sair da sede do Estado-maior do Exército. O ex-líder da Marinha, vice-almirante Juan Arnez, também foi detido, acusado de colaborar e participar da operação.