A desdolarização é um assunto em alta, impulsionado sobretudo pelo BRICS. O tema já foi sinalizado por assessores do ex-presidente Donald Trump como algo a ser acompanhado de perto, caso ele retorne à Casa Branca.
Na visão dos conselheiros de Trump, o BRICS ganhou peso a nível mundial, principalmente após a adesão de países produtores de petróleo, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, que usam o dólar como principal moeda de negócios. Os conselheiros têm entre suas propostas aplicar sanções a países aliados ou adversários que procurarem outras maneiras de realizar negócios alternativos ao dólar.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam o crescente temor dos EUA em relação aos debates sobre a desdolarização e explicam por que o renminbi chinês é apontado como o principal candidato a substituir o dólar em transações globais.
Para Roberto Goulart Menezes, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCTI-INEU), a ideia proposta pelos assessores de Trump expõe a tentativa dos EUA de manter sua hegemonia.
Ele ressalta que a dominância americana tem três pilares como base: o poderio bélico, a liderança tecnológica e o dólar como principal moeda de conversão mundial.
“Então quando os assessores de Donald Trump fazem uma declaração como essa, estão demonstrando que os Estados Unidos querem seguir com a sua hegemonia, e para isso precisam também do dólar. E não só manter, mas como tentar ampliar [a dependência do dólar]. E, por isso, os Estados Unidos tendem a utilizar o seu poderio nas diferentes organizações internacionais, como […] no Banco Mundial. Se determinado país está esperando um empréstimo do Banco Mundial ou um empréstimo no Fundo Monetário Internacional [FMI], os Estados Unidos podem retaliar”, explica.
Ele afirma acreditar que neste ano o BRICS vai discutir como poderia organizar um sistema em que as transações em moedas locais não fossem só de país a país, mas dentro do BRICS, e diz que o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), também chamado Banco do BRICS, tem expertise para levar essa conversa adiante.
“Mas isso não quer dizer que eles vão criar uma nova moeda. Eles estão utilizando a função unidade de conta de todas as moedas, de qualquer moeda, para tentar dar esse passo adiante.”
Questionado sobre a importância de reduzir a dependência do dólar, Menezes cita como exemplo o caso da União Europeia, e afirma que a criação do euro reposicionou a Europa no mapa geopolítico, o que inspirou blocos como o Mercosul a discutirem uma moeda única para a América do Sul.
“Sempre surgem essas possibilidades e, com o avanço da tecnologia, hoje a gente tem contas digitais, a gente tem as chamadas fintechs. Você tem hoje mais mecanismos, não precisa usar o papel moeda em si.”
No entanto, ele aponta que no caso sul-americano há outros desafios, e cita como exemplo o caso do Equador, onde Rafael Correa tentou, sem sucesso, reverter a dolarização da economia, implementada há 24 anos.
“Depois que se abandona a sua moeda e entra no dólar, é muito difícil conseguir sair sem deixar um grande rastro de destruição, porque a riqueza do país, enfim, a riqueza das empresas, das pessoas, aquilo que ela tem acumulado pode ter uma desvalorização muito grande porque a moeda é sobretudo confiança. Então é desejável essa desdolarização, mas ela é feita em doses homeopáticas.”
Menezes afirma que as discussões no BRICS sobre desdolarização visam a melhorar a produtividade e a competitividade dos países-membros do grupo, e ressalta que esse experimento mostra também ousadia. Por isso, não é à toa que os assessores de Trump estudam uma retaliação, caso ele seja eleito.
Segundo ele, essa é a forma de exercer a hegemonia sobre aqueles que “tentam escapar das garras dos Estados Unidos”.
“Isso já demonstra também a reação de Trump ou de lideranças políticas nos Estados Unidos nessa direção.”
Como escapar da armadilha do dólar?
Bruno de Conti, professor no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que mesmo os países que estão discutindo a desdolarização ainda dependem muito do dólar, e diz que acabar com a dependência da moeda “não é algo que acontece da noite para o dia”.
“Não é possível virar a chave e deixar de depender do dólar da noite para o dia. Então nesse sentido […] Trump tem razão quando diz que os Estados Unidos podem e seguem tendo a prerrogativa de punir os países que se esforçam pela desdolarização por meio de sanções. E aí não preciso nem me estender muito porque as próprias sanções que estão sendo feitas contra a Rússia podem ser feitas contra qualquer outro país que entre nessa batalha.”
Porém, ele concorda que o fato de os assessores de Trump estarem discutindo medidas de retaliação antes mesmo das eleições é um indício de que o tema preocupa.
“Essa conversa da desdolarização […] não é nova. Ao contrário, desde os anos 50, 60, já se fala nisso. […] Só que os Estados Unidos, enfim, lá nos anos 60, 70, fizeram políticas para reforçar o poder do dólar, e depois eles vêm com tranquilidade só administrando isso. Então quando a [secretária do Tesouro dos EUA] Janet Yellen, por exemplo, vem a público depois do fim da cúpula do BRICS do ano passado, em Joanesburgo, e fala: ‘Olha, essa ideia do BRICS, de desdolarização, não é legal. É melhor para o mundo continuar tendo o dólar como a moeda-chave’, ela acusa o golpe. Se ela vem a público e se dá o trabalho de falar isso, que não é uma boa ideia, é porque talvez seja uma boa ideia. Ela acusa o golpe”, explica.
“E Trump dizer isso também, eles estão acusando o golpe, acusando de que agora a coisa é séria, de que tem países poderosos e uma articulação tentando, fazendo esse esforço todo de desdolarização, que não é nada fácil, mas que, exatamente, incomoda muito ao estabelecimento estadunidense”, complementa.
Entretanto, ele afirma ser improvável que a próxima cúpula do BRICS, prevista para outubro deste ano, em Kazan, na Rússia, avance na criação de uma moeda comum entre o grupo, já que o processo é lento.
Questionado sobre qual moeda poderia ser apontada como principal rival do dólar, capaz de suplantar a moeda americana em algum momento, Conti aponta o renminbi chinês, “por motivos que são fáceis de entender”.
“Pela ascensão chinesa, da importância chinesa hoje econômica, já é o principal PIB [produto interno bruto] do mundo em termos de poder de compra, em algum momento no futuro próximo vai ser o principal PIB do mundo também do ponto de vista nominal. Agora não é só questão de números e de economia, é de poder geopolítico, e a China tem também mostrado um aumento imenso do seu poder geopolítico, por articulações bilaterais, por influências regionais, nos fóruns globais de discussão. Então o grande candidato é o renminbi.”
Ele afirma que a candidata anterior, o euro, que há 20 anos foi apontada como a moeda que iria substituir o dólar, não conseguiu suplantar a moeda americana por conta de sua complexidade.
“O euro é uma construção complicada, complexa, porque é uma moeda que não é nacional. É uma moeda multinacional, tem um Banco Central único, mas não existe um Tesouro único na Europa, então tem um conjunto de discussões por trás que fazem com que o euro também tenha limites nesse processo.”
Ele aponta ainda que a China está bem mais adiantada do que os EUA no que diz respeito às mudanças em curso na economia global.
“A gente está vivendo um momento de transformações grandes na economia global. […] a ascensão chinesa econômica, geopolítica, o processo de substituição monetária. […] a gente está em um momento de transformação também da forma da moeda. O mundo inteiro está criando moedas digitais dos bancos centrais. […] a China é pioneira nesse processo. Das potências, é a que está mais envolvida no desenvolvimento de sua moeda digital de Banco Central. Os Estados Unidos estão lá atrás.”