Reações violentas explodiram contra o lockdown que segue em cidades inteiras da China, uma das ditaduras mais ferozes do planeta, e extrapolam para mais exigências: liberdade, democracia e até deposição do líder Xi Jinping. O estopim foi a morte de dez pessoas em Urumqi, capital da de Xinjiang, oeste do país, onde as restrições teriam impedido bombeiros de chegar a tempo de socorrer as vítimas. O rastilho alcançou ruas até da capital Pequim, espalhando-se nas mais simbólicas demonstrações de fúria das últimas décadas, ao desafiar um governo que reprime opositores com vigilância estrita e repressão cada vez maior. O plano Covid Zero patina, com trabalhadores saturados de ficar em casa ou literalmente trancados em fábricas, enquanto um quinto da economia do país afunda, com indústria e comércio parados, afetando nada menos que 20% do PIB. E Xi Jinping, que comemorava sua recondução à liderança do país, arrisca a própria cabeça.
Moisés de Souza, professor de Estudos da Ásia-Pacífico da Universidade Central de Lancashire, no Reino Unido, diz que o assunto “morte” no país asiático é tabu e, por isso, a tragédia em Urumqi foi um catalisador. Segundo ele, sempre houve manifestações, desde a China Imperial, que o governo chama de “incidentes de massas” quando reúnem mais de 10 mil pessoas, mas normalmente são contra prefeituras, não contra o governo central. “Os protestos de agora são os mais significativos desde o massacre na Praça da Paz Celestial, em 1989, quando 3 mil estudantes foram mortos. Os chineses perdem o medo de se expressar sobre temas sensíveis ao Partido Comunista, como direitos humanos.”
O especialista observa que existe um acordo implícito entre a sociedade chinesa e o PC. “O governo reduz liberdade política e dá liberdade econômica. É como se dissesse: você é livre para empreender, viajar, consumir, mas não fale de política. Esse acordo foi quebrado. E, entre deprimidas e estressadas porque as poupanças se foram e não podem trabalhar, as pessoas foram às ruas, ainda que com muito medo.” A essa questão psicológica se soma a econômica, com a alta do custo de vida, a carestia, aponta Moisés. “E se a política rigorosa de controle da Covid-19 recebeu apoio no início, tudo tem um limite. Essa combinação de fatores disparou o gatilho das manifestações por liberdade. Os chineses estão explodindo.”
O fator vacina
A onda ocorre mesmo com a China tendo vacinado 1 bilhão de pessoas, ou 70% da população — mas com uma tecnologia que não protege das variantes Delta e Ômega. O governo disse que produziria imunizantes com a tecnologia de RNA mensageiro, como no Ocidente, mas enquanto isso surgiram novos surtos, o contágio aumentou e os confinamentos foram reforçados, motivando os protestos nas ruas e a repressão violenta.
“Para a China, assim como para EUA, Rússia, Europa, a produção da vacina também representa o potencial de um país. É a chamada geopolítica das vacinas. Quem vai salvar o mundo da pandemia? É uma questão de prestígio, de projeção positiva para a nação. Daí a recusa à compra de vacinas do exterior. Só agora a China teria assinado um acordo com a BioNTech alemã”, diz Moisés de Souza.
A projeção de alta do PIB neste ano já caiu para 5,5%, muito baixo para os padrões chineses. E não há expectativa pela volta de investimentos do exterior, porque empresas não querem se submeter à instabilidade do lockdown. “A Foxconn, maior companhia do mundo na produção de iPhones, é taiwanesa, mas tem planta industrial na China. Passou recentemente por greve de funcionários que se recusaram a ficar trancados na fábrica e há rumores de que vá se transferir para a Índia”, acrescenta.
Há estimativas de que um quinto da economia chinesa esteja em lockdown. “É como se todo o Reino Unido parasse. O impacto é brutal”, diz oprofessor. “Mas o Xi Jinping tem uma fixação: quer a sociedade mais alinhada com os princípios marxistas, como defesa de uma ‘conspiração internacional contra o crescimento da China’. Ele se preocupa com geopolítica e pode achar que as medidas restritivas e sua capacidade de organizar pessoas é quase um treinamento em escala nacional para o caso de uma crise mais aguda.”
O líder chinês se colocou em uma armadilha com a política de Covid Zero. Se mantém lockdowns, estouram protestos; se relaxa, mostra fraqueza e dá espaço a adversários questionarem sua imagem de líder supremo que tem nas mãos o futuro da China. “E quando o povo chinês vai às ruas, dinastias caem.”