O mais tardar desde os protestos no Maidan, a Praça da Independência de Kiev, e a anexação da península da Crimeia, em 2014, Moscou tem tentado influenciar a opinião pública com campanhas de desinformação direcionadas, tanto no país como no exterior.
Embora o início da guerra na Ucrânia tenha tornado difícil quantificar a extensão dessas investidas, diversos especialistas estão convictos de que sua intensidade e âmbito aumentaram.
Uma acusação especialmente persistente, lançada antes mesmo da guerra, era que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – a aliança militar contendo 28 membros da Europa e dois da América do Norte – não só estaria ameaçando a Rússia, como até pretenderia invadi-la.
Kremlin troca causa com efeito
Em diversas narrativas russas, causa e efeito são invertidos, afirma Lutz Güllner, diretor de comunicações estratégicas do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE), o departamento diplomático da União Europeia: “A coisa é sempre enfatizar o quanto a Rússia estaria, na verdade, sob sítio, ameaçada pela Ucrânia, tendo portanto que se defender. Assim se transforma a guerra em mera dissuasão.”
Por exemplo, numa mensagem televisada, poucos dias antes da invasão, em 24 de fevereiro de 2022, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmava que a Otan estava “se expandindo cada vez mais”, com sua infraestrutura militar pressionando as fronteiras do país.
Há uma certa verdade nessa alegação. Desde o colapso da União Soviética, em 1991, 14 países do Leste Europeu aderiram à Otan, quatro deles fronteiriços com a Rússia. A Ucrânia solicitou já em 2008 a chance de ingressar, por meio do Plano de Ação de Filiação da Otan. Desde a invasão russa, essa intenção só se intensificou.
É também fato que a Otan realizou preparativos logísticos em seus Estados-membros europeus, além de providenciar aeródromos para o reforço rápido de tropas. No entanto, isso veio também em reação à anexação da Crimeia por Moscou em 2014, ilegal perante o direito internacional.
A Aliança Atlântica segue respeitando o Ato Fundador Otan-Rússia de 1997, que proíbe a mobilização adicional de forças de combate substanciais em países em processo de adesão à aliança. O fato, contudo, não impediu Putin de dizer que ela está ameaçando seu país.
Outra alegação do líder russo é que há anos os ucranianos viriam perpetrando genocídio contra os russófonos na “repúblicas” de Donetsk e Lugansk, ilegalmente anexadas, e que essas áreas precisariam ser “desnazificadas”.
Desinformação em casa como no exterior
Tais mentiras visam sobretudo o público nacional, mas a narrativa também encontrou certa ressonância no Ocidente. Numa pesquisa feita na Alemanha, divulgada em outubro de 2022 pelo Centro para Monitoração, Análise e Estratégia, sediado em Berlim, 19% dos consultados concordaram que a guerra de agressão na Ucrânia seria uma resposta inevitável à provocação da Otan contra a Rússia; outros 21% declararam-se parcialmente de acordo.
A conclusão seria que, para 40% dos alemães, a Aliança Atlântica tem ao menos culpa parcial pela guerra da Ucrânia. “É um número bastante alto, e presumivelmente um resultado tanto das campanhas de desinformação quanto das crenças e atitudes existentes em relação à Otan”, conclui Julia Smirnova, analista-chefe do Instituto de Diálogo Estratégico, em Londres, que tem pesquisado o alastramento da desinformação durante a guerra.
Otan e Ucrânia retratados como agressores
No inicio da invasão, também havia relatos, mais tarde desmentidos, sobre laboratórios de armas biológicas financiados pelos Estados Unidos na Ucrânia. O Ministério russo do Exterior fizera circular as histórias sobre uma suposta “bomba suja”, mas as “provas” de sua existência foram desbancadas como velhas imagens de usinas nucleares russas e de detetores de fumaça eslovenos.
O respaldo a Kiev pelos parceiros ocidentais, por meio de ajuda financeira, armas, suprimentos e sanções, também foi instrumentalizado como fundamento para a alegação primária de Putin de que o país vizinho estaria “inteiramente sob controle externo”, sendo “fortalecido por forças armadas de países da Otan e inundado com as armas mais modernas”.
A mídia estatal russa também afirmou que tropas da Otan estariam envolvidas ativamente na guerra, com algumas unidades militares secretamente sob comando de oficiais ou instrutores ocidentais. Como prova, usaram-se muitas vezes fotos e vídeos de voluntários estrangeiros lutando ao lado dos ucranianos.
“Vejam só, a Europa ataca a Rússia”
Em maio de 2022, alegou-se falsamente em redes sociais que países-membros da União Europeia estariam prestes a participar do conflito armado. Num vídeo com o logo da BBC, afirmava-se que um general polonês teria assinado uma ordem para colocar destacamentos do Exército nacional em “alerta total”.
Mas o vídeo era uma falsificação. A BBC negou tê-lo produzido, frisando que o logo era uma imitação. Autoridades governamentais de Varsóvia acusaram Moscou de lançar ofensivas de desinformação contra o país.
A decisão recente da Alemanha de fornecer tanques à Ucrânia também foi imediatamente interpretada na mídia social como uma admissão, por parte do chanceler federal Olaf Scholz, de que a Otan estaria em guerra com a Rússia. Antes mesmo do anúncio da decisão, já circulavam online vídeos supostamente mostrando a entrega de tanques alemães Leopard 2 para a Ucrânia.
Na opinião de Roman Osadchuk, pesquisador associado do Atlantic Council, um think tank de assuntos estrangeiros sediado nos EUA, não é coincidência tais vídeos estarem circulando por toda parte. Para a Rússia, podem servir como pretexto para que se diga “Vejam só, a Europa já está preparada para nos atacar.”