O Poder Judiciário, que já teve que aposentar compulsoriamente juiz e desembargadora após denúncias, segue na berlinda em Mato Grosso do Sul. Os casos envolvem suspeita de venda de sentença, assédio judicial, sumiço de documento e acordo de desmatamento anulado após duras críticas de magistrado à juíza “substituta intrusa”.
Aposentado por limite de idade, pois completou 75 anos em abril, o desembargador Divoncir Schreiner Maran é investigado por venda de liminar que beneficiou o narcotraficante Gerson Palermo, condenado a 126 anos de prisão. Após obter prisão domiciliar em abril de 2020, sob alegação do risco de contrair covid no cárcere, o homem, que já sequestrou um avião, arrebentou tornozeleira eletrônica e desapareceu.
Investigação da Polícia Federal mostra que a decisão teve bastidores, no mínimo, curiosos. Antes mesmo de o habeas corpus de Palermo ser distribuído para o desembargador, que era o plantonista no feriado de Tiradentes, já havia decisão determinada. Segundo a apuração, o assessor chefe de Divoncir orientou uma colega sobre o mérito da decisão, determinando expressamente que fosse concedida a ordem, antes mesmo do documento ser distribuído. A assessora também alertou que havia “gambiarra”: supressão de instância e que Palermo não havia apresentado documentos que comprovassem que o traficante estava doente.
Nesta semana, o Sindjor-MS (Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Mato Grosso do Sul) divulgou nota lamentando o assédio judicial ao jornalista Edivaldo Bitencourt, editor de O Jacaré.
“A criminalização da crítica e da investigação jornalística, como neste caso, representa um grave retrocesso para a democracia e abre um precedente perigoso para a intimidação e o silenciamento da imprensa”.
O jornalista foi condenado em ação movida pelo ex-governador Reinaldo Azambuja (PSDB). O juiz da 2ª Vara Criminal de Campo Grande, Eduardo Eugênio Siravegna Junior, condenou o editor de O Jacaré a nove meses e dez dias de detenção em regime aberto. A pena por crime de calúnia foi convertida em prestação de serviços. As matérias em que o ex-governador alega que o jornalista extrapolou o “mero conteúdo de informar” são sobre desmatamento no Pantanal e licitação do Aquário do Pantanal.
“Ainda há juízes em Berlim”
De dentro do próprio judiciário surgiu uma vigorosa decisão do juiz da 1ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos, Ariovaldo Nantes Corrêa. No período em que estava de férias, o comando foi assumido pela juíza Elizabeth Rosa Baisch, que não era da lista de substitutos na 1ª Vara.
A magistrada homologou acordo para desmatar 18 hectares do Parque dos Poderes. Ambientalistas questionaram a “manobra” e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul, apesar de ser um dos signatários do acordo, solicitou que se verificasse a escala de substituição. Desta forma, descobriu-se que um juiz que estava na lista de substituto não foi chamado. O Tribunal de Justiça tem projeto de usar área no parque para erguer sua nova sede.
“Tendo em conta o evidente interesse da administração do TJ/MS na homologação do acordo como visto linhas atrás, a designação pela administração do TJ/MS de outro juiz fora da ordem natural de substituição deveria se dar com a necessária justificativa, a fim de evitar suspeita de alguma conduta irregular, o que não foi observado e impõe o reconhecimento da nulidade artigo 5º, LIV, da CF12, conforme também alegado pelos embargantes à fl. 1.613, haja vista que, antes do decurso do prazo concedido às partes para se manifestarem sobre o pedido e documentos de fls. 1.511-41 (fl. 1.550), a juíza que atuava em substituição proferiu açodadamente sentença homologando o acordo de fls. 1.543-7 e excluindo os ora embargantes, admitidos na relação processual como assistentes litisconsorciais por decisão reclusa, inclusive para o juízo, sem que tivessem antes a oportunidade de sequer serem ouvidos”, lamentou Corrêa.
Nesta mesma ação, o movimento “Amigos do Parque” anexou uma passagem histórica que se mostrou profética. “É isto que o indigitado ACORDO JUDICIAL na verdade representa: se a construção do PALÁCIO DA JUSTIÇA, naquela bucólica faixa de vegetação nativa, adredemente escolhida por uma ‘autoridade’, encontrar empecilho na Lei e na ordem ambiental – ora as Leis e o meio-ambiente! – que se modifique, então, a lei e o regramento ambiental. Aos Requerentes resta exclamar como o moleiro de Sans-Souci diante de Frederico II, Rei da Prússia, que queria desalojá-lo com sua oficina das cercanias do seu Palácio: ‘Ainda há juízes em Berlim’”.
Sumiço de decisão
Em uma reviravolta sem precedentes na história do Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul, a juíza Tatiana Decarli, da 3ª Vara Cível de Ponta Porã, acusou que houve “erro do sistema SAJ” e apagou a sentença que condenou o conselheiro Flávio Kayatt, do Tribunal de Contas do Estado. O ex-prefeito de Ponta Porã foi condenado por improbidade administrativa a perda do cargo público, que lhe garante polpudo salário, e suspensão dos direitos políticos por três anos.
Ao sumir literalmente com a sentença prolatada pela colega, a juíza Sabrina Rocha Margarido João, da 2ª Vara Cível, onde tramitou o processo contra Kayatt, a magistrada Tatiana Decarli limpou, em uma canetada, a ficha do conselheiro do TCE.
Em outro episódio rumoroso, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tem processo disciplinar contra o desembargador Geraldo de Almeida Santiago. Ele é acusado de “descumprimento de reiteradas decisões” do Superior Tribunal de Justiça em ação bilionária de uma rede hoteleira contra o Banco do Brasil. A investigação é de quando era titular da 5ª Vara Cível de Campo Grande.
Santiago proferiu decisão favorável à empresa de hotéis, que foi parcialmente mantida pelo TJMS, ao pagamento de aproximadamente R$ 900 mil. O Banco do Brasil obteve medidas cautelares no STJ (Superior Tribunal de Justiça), além de fazer diversas reclamações para que pudesse sustar as decisões de Geraldo Santiago. A maior transferência autorizada foi de R$ 1,2 bilhão. Segundo o MPF (Ministério Público Federal), o crédito devido poderia chegar a mais de R$ 300 bilhões.
Punidos com aposentadoria
Em 2022, o juiz Aldo Ferreira da Silva foi aposentado compulsoriamente pelo Tribunal de Justiça por suspeita de corrupção e venda de sentença. Ele foi alvo da Operação Espada da Justiça, deflagrada pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado).
A outra polêmica envolveu a desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges, do TJMS, também punida com aposentadoria, mas pelo CNJ (Conselho Nacional da Justiça) em dezembro de 2021. Ela foi “condenada” por usar o poder para ajudar a tirar o filho, Breno Fernando Solon Borges, preso por tráfico de drogas e munições de armas de grosso calibre, da cadeia em 2017. Ambos seguem recebendo altos salários.